Marco temporal e outros vetos: os próximos campos na batalha pelos direitos indígenas

Foto: Lohana Chaves/Funai/Reprodução
Os embates em torno dos direitos indígenas devem ter novos capítulos no Congresso e também no Supremo Tribunal Federal (STF). Após a expectativa sobre o que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetaria do Projeto de Lei (PL) 2.903/2023 aprovado no Congresso Nacional, agora as forças políticas se mobilizam em torno do que fica ou não do veto parcial na sanção da Lei Federal 14.701/2023.

A análise dos vetos e uma decisão por derrubá-los ocorrerão em uma sessão conjunta do Congresso Nacional, ainda sem data para ocorrer. Para os vetos presidenciais serem derrubados, são necessárias as maiorias absolutas das duas Casas (257 deputados e 41 senadores). 

Antes do anúncio do veto parcial, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, sinalizou que havia entendimento de que alguns pontos da proposta legislativa deveriam mesmo ser vetadas (como cultivo de transgênicos em terras indígenas), mas afirmou sobre o marco temporal haver “tendência do Congresso Nacional em acreditar que deve ser incluído no ordenamento jurídico”. 

O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), deputado Pedro Lupion (PP-PR), afirmou que as partes barradas por Lula anularam o que passou no Congresso de forma geral: “Esse veto dito parcial é praticamente um veto total, o que importa do projeto foi vetado”. Assim, desenha-se um cenário de complexidade de relações e acordos a serem firmados, especialmente com outros tantos projetos polêmicos no Legislativo, como o PL do Veneno e o PL que visa a instituir a Lei Geral do Licenciamento Ambiental, ambas que, na hipótese de serem aprovadas, flexibilizarão de forma perigosa as regras hoje existentes.

As manifestações dos movimentos indígenas e de entidades como o Ministério Público Federal (MPF) eram para que Lula vetasse a proposta na íntegra. Após reunião com Sônia Guajajara (ministra dos Povos Indígenas), Jorge Messias (Advocacia Geral da União) e Alexandre Padilha (ministro de Relações Institucionais), foram anunciados diversos trechos do texto do PL 2.903/2023 barrados e publicadas suas justificativas via Despacho presidencial (Mensagem 536).

A Lei Federal 14.701/2023 mantém um texto que por vezes solidifica algumas questões que já constam na legislação vigente e, por outro lado, contraria temas relevantes para a causa indígena. No final, aparentemente, foi preciso tentar encontrar um “caminho do meio” frente a tantos embates. De qualquer modo, é importante apontar que a demarcação de terras indígenas já possui procedimento consolidado e segurança jurídica quanto a temas que eram controversos (como a temporalidade para essas demarcações e competências dos órgãos envolvidos), sendo que o caminho ideal teria sido o veto total da proposta. Porém, a opção pelo veto total traria maior tensão política para um governo que está cada vez mais lutando para construir bases e alianças fortes no Congresso. Para além da discussão do texto normativo propriamente dito, as questões políticas envolvidas são ainda mais relevantes nesse momento.

Caso os vetos sejam derrubados, o caminho que provavelmente será seguido é o de judicialização da matéria, especialmente por ação de inconstitucionalidade. A “espinha dorsal” do projeto já tem interpretação consolidada conforme julgamento recente do STF e legislação vigente no país.

Abaixo, elencamos importantes argumentos para os vetos realizados pelo presidente.


“Tese” do marco temporal derrubada

Um dos maiores problemas do PL era a disposição expressa de que o dia 5 de outubro de 1988 seria considerado o marco temporal para demarcação das terras indígenas, conforme disposto no vetado art. 4º (caput, inciso I e §4º), que trazia que somente seriam terras “tradicionalmente ocupadas” as que fossem habitadas em caráter permanente quando da promulgação da Constituição Federal.

Uma primeira justificativa é de que há uma “dificuldade material” para se comprovar a ocupação indígena em 5 de outubro de 1988 tendo em vista a “dinâmica de ocupação do território brasileiro e seus impactos sobre a mobilidade e fixação populacional em diferentes áreas geográficas”.

Outra justificativa se deu quanto ao vício de inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público, ao passo que a “tese” do marco temporal “já foi rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida em 27 de setembro de 2023, que estabeleceu a tese de repercussão geral no Recurso Extraordinário (RE) nº 1017365, decisão essa que rejeitou a possibilidade de adotar a data da promulgação da Constituição Federal (5 de outubro de 1988) como marco temporal para definir a ocupação tradicional da terra pelas comunidades indígenas“.


Novas exigências e entraves para a manutenção dos direitos originários

Segundo as justificativas de veto, algumas exigências estabelecidas no PL contrariam a legislação vigente (Lei Complementar 101/200, Decreto Federal 1.775/1996, Portaria MJ 2.498/2011):

  • ao criar novas exigências no bojo dos estudos técnicos que subsidiam o procedimento de demarcação (quanto se estabelecia que somente seriam válidas as informações orais fornecidas em audiências públicas ou registradas eletronicamente em áudio e vídeo, com a devida transcrição);
  • ao prever nova etapa para o procedimento de demarcação, criando, para os entes federados (Estados e Municípios), obrigação de participação no procedimento sem, contudo, indicar os termos e as etapas processuais nos quais a participação deveria se dar, ressaltando que já há na legislação a previsão de manifestação desses entes federados.

O PL estabelecia ainda que era vedada a possibilidade de ampliação de terras indígenas já demarcadas, em contrariedade ao que foi decidido pelo STF no Recurso Extraordinário (RE) nº 1017365, bem como em relação à imprescritibilidade do direito dos povos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas.

Outro dispositivo que merece atenção é o que estabelecia ser nula a demarcação realizada e que não atendesse aos preceitos da nova lei, pois deixava em aberto interpretação que gerava insegurança jurídica ao permitir questionamentos sobre a validade dos processos demarcatórios já concluídos, ou seja, aplicava-se de forma retroativa a processos já finalizados sob a legislação vigente à época.

Houve também a tentativa de se alterar direitos indígenas adquiridos sobre “terras reservadas” destinadas pelo poder público, ao dispor que essas áreas poderiam ser retomadas ou destinadas à reforma agrária quando houvesse “alteração dos traços culturais da comunidade indígena ou de outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo, seja verificado que a área indígena reservada não é essencial para o cumprimento da finalidade”. Nas razões de veto, foi exposto que não havia critérios objetivos e vigentes na legislação sobre o tema, sendo inclusive um vício de inconstitucionalidade em relação a proteção e direitos trazidos na Constituição Federal.

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