Um marco regulatório do mercado de carbono

21 de novembro de 2024 – Nesta semana, o Brasil deu um importante passo no caminho para honrar seus compromissos no Acordo de Paris. Símbolo de uma demorada novela legislativa, o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE) nasceu com aprovações no Senado e na Câmara em uma semana, após ficar nove meses travado no Congresso. Um acordo costurado entre as duas Casas, com atuação do governo, possibilitou o desenlace. Nesse processo, partidos políticos e parlamentares que inicialmente se opunham à proposta foram gradualmente convencidos pelos avanços incorporados ao texto do PL 182/2024 no Senado. Um parto a ser comemorado. A aprovação majoritária na Câmara dos Deputados na terça-feira (19), véspera de um feriado nacional e tão somente há três dias do fim da COP 29, demonstrou a urgência da aprovação do SBCE: 336 votos a favor, 38 contra e 2 abstenções. O projeto segue agora para sanção presidencial.

“Finalmente a política climática brasileira contará com um instrumento de regulação de emissões, colocando o Brasil junto de pares que adotaram mercados de carbono há mais tempo. Que seja uma nova era para a implementação dos compromissos climáticos nacionais”, diz Natalie Unterstell.

A importância deste mecanismo não deve ser subestimada. A transição de que precisamos passa pela indústria e o setor energético trocarem equipamentos e processos que queimam combustíveis fósseis. Um mercado regulado, ao precificar as emissões advindas dessa queima, materializa ao agente o momento de fazer os investimentos necessários para reduzir ou zerar suas emissões. Em princípio, um mercado eficaz e efetivo é o caminho da transição de menor custo para a sociedade. O projeto recém aprovado reúne os principais elementos para induzir a indústria e o setor energético a abandonarem de vez os combustíveis fósseis até a metade do século.

“O mercado de carbono é um instrumento fundamental para colocar um preço na emissão de GEE e fazer com que as empresas façam a transição. Esse custo pela emissão faz, por exemplo, uma indústria optar por trocar sua caldeira por uma outra que não polua”, diz Shigueo Watanabe Jr., especialista sênior do Instituto Talanoa.

O Brasil se soma ao grupo de 75 países com mercados de carbono baseados em precificação das emissões ou por meio de sistemas de comércio ou taxação de carbono. Segundo estimativas da iniciativa Clima e Desenvolvimento (2022), o SBCE brasileiro poderá cobrir 16% das emissões nacionais. 

“Agora, é hora de garantir a máxima integridade e a estabilidade do processo de implementação prática rumo à zero emissões líquidas dos setores envolvidos”, afirma Caio Victor Vieira, especialista do Instituto Talanoa, que acompanhou ao longo dos últimos meses a tortuosa tramitação do projeto no Congresso.

Até 2022, houve vários projetos de lei, mais voltados para projetos de crédito de carbono do que um mercado regulado. Havia uma falha em comum – a conexão com a Política Nacional sobre a Mudança do Clima. A primeira versão do projeto ora aprovado tinha o grande mérito de definir que o mercado regulado é um dos instrumentos para a consecução do que hoje está se tornando o Plano Clima – o caminho que o país precisa percorrer para atingir a meta de emissão líquida zero em 2050.

Ao longo dos quase 18 meses entre a apresentação da versão inicial no Senado e a que foi aprovada na Câmara, o texto, que era focado na criação de um mercado regulado, definindo sua coluna vertebral: governança, diretrizes e penalidades, ganhou artigos tratando dos projetos de créditos de carbono, em princípio estranhos ao regulado. Por exemplo, há quase uma seção dedicada aos projetos de proteção contra o desmatamento (REDD+). A versão que saiu da Câmara no final de 2023 era recheada de imprecisões que criariam muita insegurança jurídica e a provável judicialização da lei.

De fato, o texto aprovado contém mudanças positivas advindas do Senado, especialmente no que refere à autonomia e à participação de povos e comunidades tradicionais em Programas Jurisdicionais de REDD+ e em projetos no mercado voluntário, através da garantia da titularidade sobre créditos comercializados em territórios coletivos e por meio de salvaguardas socioambientais, como o direito à consulta prévia, livre e informada – CLPI, a repartição justa e equitativa de benefícios e a possibilidade de indenização a comunidades por possíveis danos advindos de projetos de carbono em seus territórios. 

Quanto ao direito à Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI), um dos principais pontos de preocupação expressados pela sociedade civil e organizações indígenas e de povos e comunidades tradicionais, o texto final impõe a supervisão e acompanhamento do Ministério Público Federal, FUNAI e Ministério dos Povos Indígenas para projetos privados e Programas Jurisdicionais. 

Outro aspecto positivo se refere a reconhecer o papel da Comissão Nacional para REDD+ – CONAREDD, composto por diversos representantes da sociedade civil, setor privado e entes subnacionais no SBCE, no desenvolvimento de metodologias e  salvaguardas socioambientais, bem como no desenvolvimento de um registro de programas jurisdicionais, de geradores e desenvolvedores de projetos de carbono. 

Assim, o SBCE prevê em seu arcabouço a existência de Programas Jurisdicionais (estaduais ou nacional) baseados em projetos de desmatamento e degradação florestal evitados, conservação, manejo ou aumento de estoque de carbono florestal (REDD+). Nesse caso, estados podem comercializar créditos de carbono no mercado voluntário, caso comprovem o desmatamento evitado em determinado período. A novidade textual advinda do Senado se refere a garantia de participação na verba gerada em Programas Jurisdicionais para proprietários rurais, povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, ou caso desejem, a exclusão de seu imóvel ou território coletivo da contabilidade do Programa Jurisdicional. 

Por fim, o Projeto de Lei tem ainda outros artigos que destoam do objetivo de um mercado regulado de carbono. Por exemplo, trata das vendas em mercados internacionais, o que pode impactar compromissos assumidos pelo país no Acordo de Paris. Embora o tema seja relevante, ele não possui qualquer conexão direta com a lógica de um mercado regulado. Outro ponto ainda mais questionável é a imposição ao setor de seguros de adquirir um mínimo de 1% de ativos ambientais, possivelmente créditos de projetos de carbono. Essa foi a principal alteração do texto advindo do Senado. Esses artigos poderiam ser vetados pelo presidente sem qualquer prejuízo à proposta principal.

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