Expectativa: Mercado regulado de carbono sairá no esforço concentrado?

O Senado está em esforço concentrado. São três dias de trabalhos intensos, desta terça-feira (3) até quinta (5),  para que, na semana que vem, os senadores possam ir para seus Estados esforçarem-se em outra frente: a eleitoral. Em meio à agitação prometida, será que se desperta o Projeto de Lei (PL) que regulamenta o mercado de carbono no Brasil? A proposta descansa, há mais de seis meses, na mesa do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD/MG). 

Não se sabe se o que será acordado – desperto e combinado – virá com carimbo de PL 2148/2015, iniciado na Câmara, ou PL 412/2022, iniciado no Senado. No primeiro caso, a matéria teria de voltar para os deputados se houver mudanças de conteúdo. No segundo, os senadores discutirão alguns ajustes pontuais e encaminharão para a sanção presidencial.

A última deliberação sobre o tema no Legislativo ocorreu na Câmara dos Deputados, na última sessão de 2023, quando a proposta que cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões foi aprovada com 299 votos a favor, 103 contra e 1 abstenção. A matéria chegou aos deputados depois de longamente debatida e aprimorada no ano passado no Senado e culminando com aprovação em caráter terminativo na Comissão de Meio Ambiente (CMA) em outubro.

Nos últimos meses, a senadora Leila Barros (PDT/DF), relatora da, inderrogavelmente, melhor versão textual feita até o momento por  parlamentares no país, atua para que o Senado Federal  faça sua parte na necessária precificação do carbono no país. A parlamentar teve de lidar com dois desafios: 1) A manobra regimental feita pela Câmara dos Deputados, que visa a ter a última palavra antes do envio à sanção presidencial; e 2) Evitar que as novidades do texto aprovado pelos deputados prejudiquem a integridade do mecanismo de comércio de emissões como um todo. 

A seguir, explicamos esses desafios, com especial atenção à argumentação de se criar um Sistema de Comércio de Emissões (SCE) tropicalizado, que leve em consideração o perfil de emissões do país.

O LABIRINTO DA TRAMITAÇÃO 

Em decorrência da manobra regimental aplicada ao PL que regulamenta o mercado de carbono, ocorreu prejudicialidade pelo relator do Projeto de Lei na Câmara dos Deputados e se abriu precedente para rolagem do PL entre Casas Iniciadora-Revisora.

A prejudicialidade ocorre quando um assunto pendente de deliberação perde a oportunidade ou já foi decidido anteriormente. Isso acontece se uma proposta com conteúdo idêntico ou muito similar tiver sido rejeitada ou aprovada antes. Por exemplo, uma proposta será considerada prejudicada se, durante sua tramitação, for aprovada uma lei sobre o mesmo tema. A prejudicialidade resulta no arquivamento da proposta, mas cabe recurso na Casa Legislativa em que foi determinada.

O instrumento da prejudicialidade serve para evitar dupla tramitação de projetos com teor material, de conteúdo, muito similares. No caso deste PL, o relator na Câmara dos Deputados utilizou mais de 90% do texto da senadora Leila Barros (PDT/DF), mas arquivou o texto dela e colocou à frente um PL que tinha a Câmara como Casa Iniciadora. Desta forma, agora, a Câmara foi de Casa Revisora, que apenas corrigiria redações e melhoraria alguns artigos, à Casa Iniciadora, responsável final pelo Projeto de Lei.

Naturalmente, o corpo de senadores está solidário a Leila Barros e critica abertamente essa atitude da Câmara dos Deputados, liderado por Arthur Lira (PP/AL). Mas, para além da disputa de forças entre as Casas, a atitude fere o devido processo legal e pode, se não for sanado, ser judicializado, dado que a lei nascerá com vício formal.

Nos bastidores, circula que a senadora apresentará uma versão final que assente o rito. Isto é, ao não abrir mão de seu papel iniciador e da titularidade da primeira etapa da tramitação, Leila Barros incluirá em seu relatório uma construção textual que agrade ao Senado e à Câmara, para evitar retorno a esta Casa. Portanto, espera-se que o texto de REDD+ seja melhorado (ver abaixo alguns dos problemas e sugestões), aproximado da versão senadiana original, mas atento às demandas advindas do relator na Câmara. O “como” ainda se mantém desconhecido. Falava-se até em votação conjunta no Plenário do Congresso Nacional. Entretanto, esta solenidade formal é procedimento apenas para  Propostas de Emenda à Constituição. 

Se aprovado no esforço concentrado, o PL tem chances de virar lei antes da COP 29, a ser realizada em novembro, em Baku, no Azerbaijão, e entrar como instrumento oficial da NDC do Brasil para 2035.

TODOS QUEREM TROPICALIZAR O COMÉRCIO DE EMISSÕES – MAS COMO?

Além da questão regimental, o ponto mais movediço da tramitação legislativa são os créditos de carbono de caráter voluntário e relativos a florestas. Esses são livremente associados ao mecanismo de “Redução das Emissões de Gases de Efeito Estufa Provenientes do Desmatamento e da Degradação Florestal, Conservação dos Estoques de Carbono Florestal, Manejo Sustentável de Florestas e Aumento de Estoques de Carbono Florestal” ou, simplesmente, “REDD+”, apesar dele oficialmente (na Convenção Quadro da ONU sobre Mudança do Clima, UNFCCC) não contemplar a escala de projetos e créditos transacionáveis em mercado.

Destaca-se que esses créditos de não são aceitos em outros mercados regulados e nem na UNFCCC, exceto quando na forma de créditos de remoção e não como desmatamento evitado.

Por outro lado, setores econômicos e diversos parlamentares defendem que a megabiodiversidade brasileira é característica merecedora de pagamento pela sua conservação. O que faz bastante sentido, especialmente em se considerando que as florestas proveem serviços ambientais, como absorção e estoque de gases de efeito estufa acumulados na atmosfera. No entanto, a integração de ativos dessa natureza no mercado regulado do tipo cap-and-trade são “outros quinhentos”.

Idealmente, em um sistema “cap-and-trade” puro, créditos voluntários não deveriam ser aceitos, visto que são substancialmente mais baratos do que os créditos de sistemas regulados, potencialmente deturpando o mecanismo de precificação geral. A rigor, esse formato retira do regulador o controle do preço da permissão ao ente regulado, alterando o incentivo a passar a usar fontes renováveis em lugar de combustíveis fósseis em seus processos e incorrendo em maior morosidade na transição rumo à descarbonização de  setores econômicos.

Entretanto, no caso do Brasil, pela tentativa de reforço positivo aos interessados no mercado  voluntário, permitiu-se alguma soma de créditos de tal natureza no texto atual do PL, nomeados por “Certificado de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVE)”.

A questão principal, então, é a porcentagem da participação desse tipo de certificados no Sistema Central do SBCE. Diferentemente da precificação das Cotas Brasileiras de Emissão (CBE), prevista no SBCE, os créditos de REDD+ não possuem valores determinados pelo Órgão Superior do sistema, mas por mecanismos outros. Perdendo o regulador a capacidade de determinar preços, perde-se a capacidade de enquadrar maior ou menor incentivos à celeridade da transição das fontes emissoras internas ao sistema.

O Projeto de Lei aprovado na Câmara dos Deputados em 2023 contemplou uma redação confusa sobre esse assunto:

COMPARE OS TRECHOS SOBRE REDD+ NAS VERSÕES DO SENADO E DA CÂMARA

Como se pode ver no comparativo acima, a confusa redação dada pela Câmara poderá incorrer em riscos de dupla contagem. Ainda que o PL, sumariamente, mencione a vedação à dupla contagem, ao codificar abordagens de REDD+ da forma que o faz, permite-se a aceitação de créditos de integridade duvidosa e com cálculos de linha de base questionáveis. Isto é, a proposta regula créditos do mercado voluntário sem deliberações técnicas inclusivas e sem a participação da Comissão Nacional para REDD+ (CONAREDD+).

Reconhece-se que há, nos governos dos estados da Amazônia Legal e no setor produtivo, defesa da possibilidade de que REDD+, tanto para abordagens de mercado quanto para não-mercado, faça parte do SBCE, e que os créditos advindos de sistemas jurisdicionais sejam aceitos.

Diversos atores da sociedade civil, da academia e, inclusive, algumas desenvolvedoras de projetos de créditos de carbono voluntário alertam para a sensibilidade da inserção de REDD+ no texto da Câmara, que deve ser feita com cautela e robustez técnica, mediante amplo diálogo – que até o presente momento não ocorreu.

Repare que a crítica que fazemos, nesta parcela do Projeto de Lei, é formal, não material. Critica-se a forma, não a possibilidade de fazê-lo. Criticam-se a técnica legislativa e a tentativa de impetrar pacificações sem diálogos.

Enquanto isso, gastam-se recursos variados com deliberações e acordos para uma reserva de créditos que não deveria compor mais do que 10% do cômputo geral do SBCE.

POVOS INDÍGENAS E COMUNIDADES TRADICIONAIS: O ATROPELAMENTO DE COMPETÊNCIAS DA CONAREDD+.

Ainda sobre a questão de REDD+, o artigo 47 do texto aprovado na Câmara  também dispõe sobre os CRVEs e créditos de carbono em áreas ocupadas por Povos Indígenas e Povos e Comunidades Tradicionais. Aparentemente dotado de boas intenções, é importante atentar-se à questão da repartição equitativa de benefícios. Entendemos que o papel do PL deveria ser o de estabelecer diretrizes gerais, deixando à CONAREDD o papel regulatório desses méritos.

No Inciso II do referido artigo, o texto dispõe que povos indígenas e comunidades tradicionais têm direito a, no mínimo, 50% dos CRVEs em projetos de remoção de Gases de Efeito Estufa (GEE) e 70% dos créditos de carbono em projetos de REDD+ “abordagem de mercado”. Esta definição não foi consultada com entidades representativas de povos indígenas e comunidades tradicionais, carecendo evidências técnicas para estabelecimento deste critério em lei. Entre suas competências, cabe à CONAREDD, além do estabelecimento e cumprimento das salvaguardas, emitir resoluções sobre  pagamentos por resultados, o uso de recursos de pagamentos por resultados de REDD+ captados pelas entidades elegíveis (art. 3º, incisos II, III e VII do Decreto nº 11.548/2023).

Quanto ao Direito à Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI, Convenção 169 da OIT), previsto no Inciso I do artigo, levantam-se preocupações sobre a responsabilização unívoca do desenvolvedor em custear dito processo, já que se trata de procedimento que incumbe ao Estado, segundo ppentendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanosp (2012). Reiteradas denúncias de abusos em projetos de carbono contaram com eventos fraudulentos de CLPI, indicando que boas intenções ou um simples custeio por parte de atores privados interessados em desenvolver projetos em territórios coletivos não é garantia que o processo seja feito de forma adequada. Cabe observar que diversos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais já contam com protocolos autônomos ou protocolos comunitários de CLPI, que devem ser respeitados.

Em suma, propositalmente ambíguo com relação a povos indígenas e comunidades tradicionais, o PL trata de antecipar prerrogativas de competências da CONAREDD (art. 3º, incisos II, III e VII do Decreto nº 11.548/2023), quiçá por receio do rigor de suas resoluções e cumprimentos de salvaguardas, amparada por representação de povos indígenas e de outros povos e comunidades tradicionais, trazendo maior maior segurança e evidências técnicas para  a garantia de direitos dessas populações.

EXPECTATIVA X REALIDADE

Não há divergência quanto à possibilidade ou necessidade de adaptar o SBCE às especificidades brasileiras. Tampouco há disputa sobre a urgência da aprovação do PL, que pode abranger aproximadamente 16% das emissões nacionais. O alerta é sobre o risco de se comprometer a integridade da regulação como um todo, quando se estabelecem reservas de mercado e se desequilibra o balanço entre o esforço legal e infralegal. Em tempos de emergência climática, o esforço deve ser concentrado sempre. Sua aprovação agora, traria importante avanço a ser apresentado na COP 29 e incluído como instrumento da NDC do Brasil para 2035.

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