Marco temporal: o que vem depois da batalha vencida no STF

Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
Uma batalha foi vencida, mas a guerra ainda não acabou. Este foi o sentimento dos milhares de indígenas que acompanharam o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da chamada “tese” do marco temporal. Por 9 votos a 2, a Corte decidiu que a demarcação de terras dos povos originários não pode considerar a data da promulgação da Constituição Federal (5 de outubro de 1988) como o marco para definição da ocupação tradicional das terras por eles ocupadas. 

A tese começou a ser julgada em agosto de 2021 e contraria o fato de que há comunidades nômades e outras tantas que foram retiradas de suas terras. Portanto, estabelecer o marco de 1988 para a demarcação fere os direitos indígenas. O art. 231 da Constituição Federal estabelece que os povos indígenas têm “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Por meio da ação judicial (Recurso Extraordinário 1017365, com repercussão geral – Tema 1.031), adveio a discussão acerca do que seria considerado como requisito para a ocupação “tradicional”, num caso concreto entre o povo Xokleng e o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) por conta de reintegração de posse de área parcialmente localizada na Reserva Biológica do Sassafrás. 


Teoria do fato indígena x Teoria do indigenato 

A tese do marco temporal se enquadra na “teoria do fato indígena”, que considera que a data da Constituição de 1988 é o referencial para o reconhecimento das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas. A derrubada da tese no STF nesta semana fortalece a “teoria do indigenato”, segundo a qual há direito originário dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam, anterior à criação do Estado brasileiro.


O que os ministros do STF ainda vão decidir

Na próxima semana, será retomada a discussão acerca das indenizações àqueles que possuem terras adquiridas de boa-fé em áreas consideradas (ou que venham a ser consideradas) terras indígenas. Há divergência na Corte em torno do tema, a partir de proposta lançada pelo ministro Alexandre de Moraes sobre a possibilidade de indenização prévia da terra nua e benfeitorias aos ocupantes não indígenas que detenham posses comprovadamente adquiridas e mantidas de boa fé. Há críticas de entidades como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que entende que a indenização não é objeto da ação judicial e, portanto, não deve ser nela discutida. Em nota, a APIB afirma que “a proposta da indenização supõe uma premiação aos invasores ilegais que representam a maioria das propriedades com sobreposição em terras indígenas, portanto, um incentivo à ocupação ilegal de terras paga com dinheiro público”. Essa pertinência da discussão foi debatida no próprio Plenário, pelo ministro Luís Roberto Barroso, que deu indicativos de não ser o momento devido para se debruçar sobre o tema.

Outro ponto de destaque é o indicativo feito pelo ministro Dias Toffoli, apoiado pelo ministro Gilmar Mendes, sobre a necessidade de regulamentação da exploração de recursos (hídricos, minerários e hidrocarbonetos) em terras indígenas. A APIB também criticou esse ponto, afirmando que pode representar ameaças aos direitos dos povos originários, não é objeto do julgamento em curso no STF e deve ocorrer em momento posterior, com a devida participação do movimento indígena, por meio de procedimentos de consulta e discussão adequados. Em outras palavras, a discussão deveria ser feita de forma integrada com os povos indígenas, suas representações e conforme sua cultura, costumes e tradições. 


A derrubada da tese do marco temporal e a trajetória da nossa descarbonização

O não reconhecimento do marco temporal impacta de forma significativa na trajetória de descarbonização do país, pois amplia-se a possibilidade de demarcação e homologação das terras indígenas ao se retirar uma limitação temporal para que houvesse a comprovada ocupação da área. A expansão das áreas protegidas, que incluem unidades de conservação e terras indígenas, são parte fundamental para efetivação dos cenários de mitigação previstos para esta década. De acordo com o estudo Clima & Desenvolvimento: Visões para o Brasil 2030, o Brasil precisa expandir 17 milhões de hectares, entre UCs e TIs, chegando aos 293 Mha de hectares de áreas protegidas em 2030. Neste ano, com as demarcações realizadas pela atual gestão do governo federal, foram incrementados 612 mil hectares à parcela do território nacional ocupada por terras indígenas. Considerando a meta e o tempo que temos, foi dado um importante passo jurídico no sentido da descarbonização.


Batalhas no Congresso

A discussão sobre o marco temporal segue no Poder Legislativo, especialmente na tramitação do Projeto de Lei (PL) 2.903/2023 do Senado (antigo PL 490/2007 da Câmara dos Deputados), cuja votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) está marcada para a próxima quarta-feira (27/09). Foi rejeitada na CCJ a realização de audiência pública sobre o tema, acelerando-se a tramitação. O senador Marcos Rogério (PL/RO) comprometeu-se a solicitar ao presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, a realização de audiência pública no Plenário.

A proposta legislativa não trata somente do marco temporal, mas traz outras ameaças para os povos indígenas e a conservação de suas terras – o que ameaça também o papel fundamental desses territórios no equilíbrio climático. O PL propõe, entre outros pontos críticos, dispensar a liberação de atividades altamente impactantes (construção de estradas, hidrelétricas, linhas de transmissão etc) da realização de consulta livre, prévia e informada às comunidades indígenas afetadas.

Outro PL sobre a exploração de recursos em terras indígenas é o PL 191/2020, que está na Câmara. Ele visa “estabelecer as condições específicas para a realização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e para o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas e institui a indenização pela restrição do usufruto de terras indígenas”. 

Sem dúvida o julgamento realizado na presente semana é uma das maiores decisões do Poder Judiciário brasileiro, que fortalece direitos, diminui desigualdades e traz, sim, um reparo histórico. Contudo, há duras batalhas pela frente, especialmente no âmbito do Poder Legislativo, o qual tem (e provavelmente terá) propostas que atentam contra tais vitórias.

Equipe Editorial (Liuca Yonaha, Marta Salomon, Melissa Aragão, Ester Athanásio, Marco Vergotti, Renato Tanigawa, Taciana Stec, Wendell Andrade, Daniel Porcel, Caio Victor Vieira, Beatriz Calmon, Rayandra Araújo e Daniela Swiatek).

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