Já não vivemos um estado de coisas inconstitucional no meio ambiente?

No início do mês, a Advocacia-Geral da União (AGU) e o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) apresentaram ao Supremo Tribunal Federal (STF) petições em 10 processos que tramitam na Corte sobre as políticas ambientais do governo federal nos últimos anos. São solicitações que defendem:

  • perda do objeto da ação em dois casos (ADPF 981 e ADPF 592);
  • perda parcial do objeto da ação em dois casos (ADI 7107 e DPF 755;
  • comunicação de que as providências determinadas em sentença de uma ação já julgada estão sendo cumpridas (ADO 59);
  • considerar que a mudança administrativa seja considerada no julgamento do mérito de cinco ações (ADO 54, ADPF 760, ADPF 857, ADPF 746 e ADPF 743).
Tabela em documento divulgado pela AGU. Acesse em PDF

 

Todas as petições foram instruídas com a Nota Técnica 128/2023-MMA, da Secretaria Executiva do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA). O documento busca trazer argumentos que comprovam, na sua visão, a reversão do chamado “Estado de Coisas Inconstitucional”, conceito cunhado pela ministra do STF Cármen Lúcia quando do proferimento de voto no julgamento da ADPF 760 (sobre as políticas para combater o desmatamento na Amazônia, ainda pendente de andamento por pedido de vistas do ministro André Mendonça). Para tanto, traz que:

  • Novas normas: uma série de decretos foram assinados e encontram-se em vigor desde o dia 01/01/2023, os quais demonstram “os novos rumos da gestão ambiental brasileira”.
  • Participação Social: foi determinada a revisão da composição do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para restituir “a participação dos setores que foram sumariamente excluídos quando esse ato normativo passou a vigorar, garantindo desse modo, a ampla participação da sociedade”. E houve a “retomada da implementação do Fundo Nacional do Meio Ambiente, tendo sido tomadas medidas para a nomeação dos membros de seu Conselho Deliberativo”.
  • Prevenção e controle do desmatamento: ações sobre o tema, incluindo o retorno do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar) para o MMA, início da elaboração do Plano Emergencial de Controle do Desmatamento, reunião com os nove Secretários de Meio Ambiente da Amazônia Legal para realinhamento federativo visando à pactuação de medidas conjuntas, conversas bilaterais com Alemanha e Noruega para captação de recursos e articulação entre Ibama e ICMBio para ações imediatas de fiscalização ambiental.
  • Fiscalização ambiental: aumento de orçamento do Ibama para fiscalização, extinção da fase de conciliação ambiental, revisão de atos normativos sobre processo sancionador editados no Governo Bolsonaro, elaboração de projeto de fortalecimento da fiscalização ambiental e a retomada das ações de fiscalização do desmatamento em campo.
  • Ampliação orçamentária: crescimento na dotação total na ordem de 39,7% em relação ao valor empenhado no último exercício.

Nas petições da AGU nas ADPFs 760 (desmatamento na Amazônia) e 857 (incêndios no Pantanal), houve a expressa afirmação de que houve a “cessação do estado de coisas inconstitucional”.

O que é o “Estado de Coisas Inconstitucional” na área ambiental?

A ministra Cármen Lúcia, quando proferiu o voto na ADPF 760, em abril do ano passado, trouxe as bases para o seu entendimento pelo então “Estado de Coisas Inconstitucional”. Ela resgatou a literatura especializada, julgados e casos práticos para elucidar a questão. Além disso, e com base nas informações trazidas no processo pelas partes envolvidas, entendeu que eram verificáveis “diversas falhas estruturais nas políticas ambientais de controle ao desmatamento da Amazônia, de garantia de respeito aos povos indígenas, à ausência de fiscalização eficiente, à inexecução dos orçamentos garantidores da adoção das providências necessárias à garantia da eficiente proteção do meio ambiente”, demonstrando “a inércia e a recalcitrância administrativa e vislumbre de falta de vontade política em cumprir fielmente a Constituição ambiental”, sendo que o “descumprimento aos deveres constitucionais sobre o meio ambiente ecologicamente equilibrado e aos tratados internacionais assinados pelo Brasil tisna de inválido o estado de coisas na matéria ambiental”.

Cármen Lúcia afirmou que “as políticas públicas ambientais atualmente adotadas revelam-se insuficientes e ineficientes, portanto constitucionalmente inválidas, para atender o comando constitucional de preservação do meio ambiente e do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, pela extrema gravidade e urgência que a questão representa”.

Com isso, e considerando-se a “insuficiência das justificativas apresentadas pelos órgãos responsáveis (…) e aos crescentes níveis de desmatamento da Amazônia”, a ministra reconheceu o “estado de coisas inconstitucional”.

Portanto, a sua base de análise foi a inércia ou ação não suficiente do Governo Bolsonaro na questão socioambiental.

O reconhecimento do fim do “estado de coisas inconstitucional” é pertinente?

As bases para o reconhecimento desse “estado de coisas inconstitucional” foi o contexto do Governo Bolsonaro, ou seja (e obviamente), não o Governo Lula.

É importante relembrar que em discurso Lula afirmou: “(…) a partir de agora, vocês vão ter paz porque vocês não vão ter um presidente desaforado querendo intervir na Suprema Corte, querendo intervir na Justiça Eleitoral”. Assim, é previdente que não haja abertura para uma possível interpretação de “intervenção política” nas ações em trâmite no STF. Tal situação poderá enfraquecer as relações entre os Poderes ou mesmo colocar em dúvida a lisura de condutas. Há possibilidade de se reconhecer, sim, a perda de objeto caso uma norma que originalmente estava vigente e deu sustentação à propositura de uma ação judicial foi revogada, sendo substituída por outra que a “consertou” dentro das linhas mais democráticas. A decisão deve ser atinente aos fatos que ensejaram a propositura da ação à época.

É relevante que haja a formação de jurisprudência de base que atue para inibir condutas contrárias à Constituição Federal, normas vigentes, direitos garantidos e proteções fundamentais (como é o caso do meio ambiente). Para tanto, tais ações poderiam trazer tal cenário e, de forma fundamental, sedimentar entendimento de que a afronta à agenda socioambiental e climática no Brasil não compensa e será punida pelo rigor da Lei.

Por fim, ressaltamos que as nomeações para cargos altos na estrutura ministerial estão sendo realizadas a passos lentos. Por exemplo: o presidente do IBAMA, Rodrigo Agostinho, somente foi nomeado em 24/02, estando ainda pendente a nomeação do presidente do ICMBio. Tampouco houve andamento público para instituição da Autoridade Climática. Em relação às normas, poucas foram editadas e publicadas, sendo verificável um volume mais considerável nos primeiros dias do Governo Lula, como mostra nosso Monitor da Reconstrução.

O processo de retomada das agendas socioambientais e climáticas do Brasil está em curso, é evidente. Porém, a reversão de um “estado de coisas inconstitucional”, estabelecido a partir de um Método de Desconstrução posto em prática em quatro anos, requer mais velocidade para que o ciclo da política pública possa se estabelecer de forma consistente, impulsionando de fato o seu percurso, do estabelecimento da agenda, passando pela formulação das ações e alcançando a eficiente implementação. Para se considerar superado o “estado de coisas inconstitucional”, em muitos dos aspectos levantados nos questionamentos no STF, é necessário ser possível vislumbrar com clareza que esse ciclo está desenhado e a engrenagem está já rodando.

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