Na semana em que o Brasil relembra a tragédia que aconteceu no Rio Grande do Sul, há um ano, um decreto passou a estabelecer, em nível infralegal, tratamento diferenciado a municípios em situação de emergência ou estado de calamidade pública em consequência de inundações e enxurradas ou que estejam em cadastro de municípios suscetíveis a esse tipo de eventos, desobrigando-os do alcance de critérios mínimos de que trata a Lei Federal nº. 11.445/2007 (Lei do Saneamento Básico, atualizada em 2020) – para o recebimento de recursos públicos federais e/ou operados por entes da União.
Puxando o fio da regra legislativa, o decreto só pôde eximir os municípios de cumprirem de critérios mínimos porque uma outra Lei Federal, a 15.112, em vigor desde março/2025, estabeleceu essa desobrigação em nível legal. A Política por Inteiro foi investigar o processo legislativo responsável por colocar a norma no mundo e constatou que o Projeto de Lei (PL) foi ausente de uma Exposição de Motivos ou Justificação que permita uma análise substancial das motivações que levaram à sua propositura. E, consequentemente, as razões para o decreto, em nível de regulamentação.
Laconicamente nascido em 5 de novembro de 2024 – enquanto as atenções estavam voltadas para a preparação brasileira à COP 29, que começaria dias adiante – o PL, de iniciativa do próprio Legislativo (senador Paulo Paim, PT/RS) chegou à Câmara dos Deputados e logo recebeu um requerimento de urgência do deputado José Guimarães (PT/CE). Dias depois, um rápido parecer do relator da matéria, deputado Bohn Gass (PT/RS). Em seu voto, o relator afirmou que os critérios exigidos pelo próprio marco do saneamento básico são “obstáculos desnecessários” para a liberação de recursos.
Recursos, sim, mas com critérios claros
A Política por Inteiro observa com cautela esse movimento. É bem verdade que os municípios brasileiros são amplamente diferentes entre si, com capacidades gerenciais absolutamente heterogêneas, com graus de complexidade de problemas que Brasília, muitas vezes, não compreende. No entanto, a liberação de recursos não pode abrir mão de uma pactuação de critérios “sob medida” para que os municípios evoluam em saneamento e adaptação climática. Esse comportamento do Estado brasileiro é essencial para evitar que desastres originados por eventos climáticos extremos não sejam “chamarizes” para captação de recursos ao nível local. Se isso ocorrer, teríamos, para além dos desastres naturais, um desastre na administração de recursos públicos e um expressivo furo em uma contabilidade climática no Brasil. Um incentivo perverso, com potencial de levar gestores locais a não investirem para melhoria de índices de saneamento, já que, em tese, podem vir a se beneficiar em função do caos. Ademais, a disposição em injetar dinheiro na hora do caos pode passar a equivocada mensagem de que a política climática responde às emergências, mas não se antecipa com planejamento e prevenção. O Rio Grande do Sul já mostrou – de forma dramática – que o dinheiro aplicado na gestão do desastre é prejuízo que pode ser evitado, ao menos em partes.
A conta climática brasileira precisa de integridade e progressividade, atributos que só se concretizam quando o federalismo brasileiro se compromete com transformações. Sem pactuação, podemos estar mais próximos de estagnação do que de resultados. Orçamento climático não é um buraco sem fundo. Logo, a conta não fechará.
Em dezembro de 2024, quando o PL ainda tramitava, a deputada Duda Salabert (PDT/MG) se manifestou no processo com uma proposta de emenda, expondo que o texto do PL trazia “preocupações significativas”. Segundo ela, a “utilização de critérios subjetivos como a suscetibilidade a enxurradas e inundações pode criar brechas que favoreçam a aplicação inadequada de recursos públicos”.
Acompanhamos a preocupação e o entendimento de Duda: “não somos contrários ao fortalecimento da capacidade de municípios atuarem na mitigação dos efeitos das chuvas. Pelo contrário, compreendemos a relevância de fomentar políticas que previnam tragédias e perdas humanas e materiais. Porém, entendemos que essas medidas devem estar respaldadas por critérios claros, objetivos e auditáveis, garantindo transparência e eficiência no uso dos recursos públicos”.
O decreto desta semana estabelece que, para a operacionalização do cadastro dos municípios suscetíveis a enxurrada, que será publicado pela Secretaria Especial do Programa de Aceleração do Crescimento da Casa Civil, poderão ser editadas normas complementares. A Política por Inteiro seguirá acompanhará esse fio.