Alagados, Trenchtown, Favela da Maré…
Quando em 1986 Os Paralamas do Sucesso ganhavam as rádios naquele Brasil em plena redemocratização, entoando o canto que criticava a falta de soluções nas periferias do Sul Global, as discussões sobre a mudança do clima ainda estavam no campo da ciência e sua gravidade era um problema do futuro. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) seria fundado somente dois anos depois, em 1988.
Destacando a desigualdade e a falta de oportunidades dos que vivem nas periferias, em favelas de Salvador, na Jamaica e no Rio de Janeiro, a letra faz uma dura crítica social, mas também conclama a não perdermos a esperança e a exercitarmos uma certa “arte de viver da fé”.
Trinta e oito anos se passaram e, para além de não perderem a fé e a esperança, as cidades – e, em especial, as periferias – estão diante de um novo desafio: o da adaptação climática. Populações vulneráveis e mais expostas são as que mais sofrem e sofrerão com os eventos extremos, já mais frequentes e fortes.
A adaptação desafia nosso modo de enxergar o mundo e enfrentar os problemas públicos, historicamente setorizados, segmentados, separados em caixas. Em tempos de emergência, somos obrigados a abandonar os velhos modos e encarar nossos problemas sociais e ambientais fora da caixa. É dessa compreensão reformada – e somente dela – que poderão vir novas formas de governos e sociedade cooperarem. O que pode fazer a diferença, na vida prática, não é uma ação de A ou de B, mas uma terceira, que só pode ser feita conjuntamente. E isso vale tanto para governos – nos quais a própria forma de organização é dentro de pastas, com pouca mobilidade para fazer diferente, adestrados pelo medo perante os órgãos de controle – e para o tecido de organizações da sociedade civil.
Adaptação climática deve ser um conjunto consistente (e contínuo) de medidas que reduzam desigualdades dentro da emergência climática. Se intervenções urbanas ditas de interesse público não reduzirem desigualdades, é qualquer outra coisa, mas não é adaptação.
Em matéria de Adaptação, a sociedade civil tem um importante papel: por constituírem parte de quem vive o problema, as contribuições que emergem de organizações sociais devem ser aproveitadas pelos governos, que de Brasília até as pequenas e mais longínquas cidades em relação aos centros de Poder, precisam transformar as diretrizes de política climática para adaptação em normas e comportamentos. A Estratégia Nacional de Adaptação está na praça, e é uma grande oportunidade para uma transformação nacional não veio para ser apenas mais uma política.
Assim como no Rio de Janeiro, na Bahia e em centenas de cidades brasileiras, muitas cidades da Espanha vivem dos braços abertos de seus cartões postais. Mas nesta semana, Valência, a terceira mais populosa delas, e de frente para o Mar Mediterrâneo, recebeu em 8 horas a chuva que cairia em um ano inteiro. Mais um evento climático extremo, de proporções históricas – já considerado o pior da história moderna espanhola – e cujos prejuízos incalculáveis sinalizam que ações de adaptação climática, tanto ao Norte quanto ao Sul, já deveriam ser prioridade máxima de governos pelo mundo. Para qualquer brasileiro, independentemente de orientação política ou ideológica, a experiência de ter visto as cenas de Valência nos noticiários remonta a poucos meses atrás, no Rio Grande do Sul.
A arte de viver da fé é algo que nunca deve mudar, mas se em algum momento bater a dúvida sobre o só não se sabe fé em quê, a Ciência e a ação coletiva seriam bons endereços.
TÁ LÁ NO GRÁFICO
Acabou a COP 16 em Cali. Já já vem a COP 29 em Baku. Depois tem a COP 16 (de novo??) em Riad. Calma! Não todas são “Conferências das Partes”, mas reúnem os países no âmbito de três convenções distintas da Organização das Nações Unidas (ONU). São as irmãs: Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês), Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e Convenção para o Combate à Desertificação (UNCCD, na sigla em inglês). O Tá Lá No Gráfico desta semana conta essa história de quase 30 anos de COPs.
FRASE DA SEMANA
“O desastre não é só um evento, é um processo contínuo e progressivo. E a maladaptação maquia o problema, transfere vulnerabilidades e amplia desigualdades.”
Maria Fernanda Lemos, arquiteta e urbanista, pesquisadora da PUC-Rio, em evento sobre Diplomacia da Adaptação Climática, promovido pela Talanoa. Foto: Daniel Porcel/Instituto Talanoa.
ABC DO CLIMA
GGA – Global Goal on Adaptation – A Meta Global de Adaptação foi estabelecida pelo Acordo de Paris de 2015, no Artigo 7, com o objetivo de aumentar a capacidade adaptativa, fortalecer a resiliência e reduzir a vulnerabilidade às mudanças climáticas, contribuindo para o desenvolvimento sustentável e garantindo uma resposta adequada no contexto da meta de temperatura definida no Artigo 2. Proposta em 2013 pelo Grupo Africano de Negociadores (AGN) e formalizada em 2015, a GGA é um compromisso coletivo destinado a fornecer um marco unificador que impulsione a ação política e o financiamento para adaptação climática na mesma escala dos esforços de mitigação. (UNFCCC, 2024).
MONITOR DE ATOS PÚBLICOS
O Monitor de Atos Públicos captou 9 atos relevantes para a política climática nesta semana. O tema mais recorrente foi Terras e Territórios, com 4 normas captadas, a maioria relacionada à criação de projetos de assentamento e projetos de desenvolvimento sustentável (PDS). A classe mais recorrente foi Regulação, com 5 atos, que além da agenda fundiária, também inclui a criação de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN).
BRASIL
Diplomacia da Adaptação
Nesta semana, o Instituto Talanoa reuniu 39 organizações, de 12 países, para a 1ª capacitação Diplomacia Climática como Prioridade para América Latina e Caribe. O evento foi realizado no Rio de Janeiro e entrou na agenda de side events do G20. Adaptação climática é um dos pilares do Acordo de Paris, no qual todas as Partes concordaram em aumentar a capacidade adaptativa, fortalecer a resiliência e reduzir a vulnerabilidade às mudanças climáticas. No entanto, o tema não recebeu atenção suficiente até o momento, e tampouco foi priorizado nas últimas Conferências das Partes – COPs. Dada a preparação do Brasil para sediar a COP30, há uma oportunidade de posicionar a região latino-americana para melhor se engajar na diplomacia de implementação relacionada à adaptação. Diante deste contexto, nos três dias de encontro, as organizações convidadas buscaram discutir e construir estratégias para aumentar a capacidade das instituições para atuar como promotoras e observadoras da diplomacia da adaptação.
APIB e Marco Temporal
Na última quarta-feira (30), indígenas se reuniram na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para se posicionar contra a proposta de Marco Temporal e para defender seus direitos como povos originários. Após o ato, realizaram-se inúmeras reuniões com lideranças e autoridades públicas dos três poderes da República para articular estratégias de contrainteligência no que se refere a garantir que a Câmara de Conciliação do Marco Temporal incorpore as demandas indígenas sobre os pontos em disputa na Lei n° 14.701/2023.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) retirou-se da Câmara de Conciliação por entender que o processo estava eivado de arbitrariedades. Sem legitimidade, portanto. Afirmam que a instalação do processo conciliatório não foi avaliada pelos demais ministros e que houve explícita desconsideração dos pleitos sobre garantias processuais. O escanteamento da oitiva indígena é a motivação principal das mobilizações mais incisivas vistas durante esta semana.
MUNDO
Pedido por mais ambição climática
Colômbia e Brasil, como anfitriões da COP16 da Biodiversidade e da COP30 do Clima, podem criar uma Parceria Latino-Americana que mostre ao mundo a conexão entre o clima e a natureza. Com este objetivo, nesta semana, na COP da Biodiversidade, que ocorre em Cali, na Colômbia, representantes dos governos brasileiro e colombiano receberam a carta da Missão 2025, que instiga os governos a elaborar novos planos climáticos nacionais (NDC – Contribuição Nacionalmente Determinada) mais ambiciosos. A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, recebeu o documento pelo Brasil. No nosso blog você encontra a carta e uma análise da Política por Inteiro sobre isso.
COP-16 e protestos indígenas
Um dos poucos temas que avançou nas duas semanas de negociações da COP da Biodiversidade, em Cali, foi o debate sobre o artigo 8j, que se refere à participação dos povos indígenas e das comunidades locais, com os negociadores aprovando um plano de trabalho. No entanto, a criação ou não do órgão subsidiário ainda está pendente. Fora das salas de negociações, indígenas e comunidades tradicionais realizaram uma série de manifestações pacíficas pedindo maior participação nas tomadas de decisões e lançaram o G9, grupo que representa 511 Povos e luta em defesa da Amazônia, dos Povos Tradicionais, da biodiversidade e do clima global. Na quarta-feira (30), a indígena Txai Suruí e outros ativistas tiveram sua manifestação contra o Marco Temporal interrompida de forma violenta por seguranças da ONU. Apesar de os ativistas brasileiros terem pedido uma autorização à ONU para o ato, a resposta não chegou a tempo e eles decidiram manter a manifestação. Txai afirmou que seu braço foi puxado com força e seu crachá arrancado pelos policiais. Após momentos tensos, ela foi levada a uma sala de segurança da COP e, pouco tempo depois, com a presença de Marina Silva, liberada. Temos um resumo do que avançou ou não nesta segunda semana de negociações em Cali. Acesse aqui.
Aquecimento do planeta e tempestades na Espanha
As tempestades que causaram alagamentos históricos no Sul de Espanha foram cerca de 12% mais intensas e duas vezes mais prováveis por causa do aquecimento do planeta, que está cerca de 1,3°C mais quente do que na era pré-industrial. Os resultados são de uma análise do World Weather Attribution (WWA), grupo de cientistas que avalia a influência do aquecimento do planeta em eventos extremos. De acordo com os pesquisadores, parte da explicação está no fato de que uma atmosfera mais quente retém mais umidade, levando a chuvas mais fortes. Além disso, as mudanças climáticas também aumentaram em 50 a 300 vezes a probabilidade da ocorrência das altas temperaturas no Oceano Atlântico, que adicionaram umidade à tempestade, de acordo com uma análise separada da Climate Central. Episódios semelhantes de chuvas extremas se tornarão mais intensos e ainda mais frequentes à medida que o clima esquentar. Na semana passada, a ONU alertou que, se nada mudar, o mundo terá um aquecimento entre 2,6 e 3,1°C até ao final deste século.
MONITOR DE DESASTRES
O Monitor de Desastres captou 7 atos de reconhecimento de emergência decorrentes de eventos climáticos extremos, que atingiram 29 municípios. A estiagem e a seca foram as situações mais registradas. Só no Amapá, 16 municípios declararam situação de emergência por estiagem. A seca segue impactando fortemente o estado de Minas Gerais. Foi registrada apenas uma ocorrência de tempestades, na Região Sul.
Nota explicativa: os dados registrados no Monitor de Desastres referem-se única e exclusivamente às situações de emergência ou calamidade pública reconhecidos oficialmente pela Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil/MDIC nesta semana. Eventualmente, é possível que desastres ocorridos na mesma semana não sejam contabilizados, dado que o reconhecimento do governo federal leva alguns dias para ser publicado.
TALANOA NA MÍDIA
Capital Reset | Cita a Talanoa como uma das signatárias da carta da Missão 2025. |
O ECO | Reportagem cita análise elaborada pela Política por Inteiro. |
Mídia NINJA | Cita a Talanoa como uma das signatárias da carta da Missão 2025. |
EXAME | Cita a Talanoa como uma das signatárias da carta da Missão 2025. |
Carbono News | Cita a Talanoa como uma das signatárias da carta da Missão 2025. |
Bom fim de semana,
Equipe POLÍTICA POR INTEIRO