Que política climática é essa?

Em 19 minutos de pronunciamento na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva explorou 11 temas de interesse (inter)nacional. Foi de reforma do multilateralismo até o desafio de uma “inteligência artificial emancipadora”, que se coloque a serviço da resolução de problemas globais; fez falas firmes sobre guerras, fome, desigualdade, geopolítica nas Américas, protecionismo econômico, cooperação e, claro, mudança do clima. Esse tema, por sua vez, percorreu assuntos como Amazônia, transição energética e financiamento ao Sul global. Lula sobrevoou todos eles, e trouxe um bônus: anunciou que o novo pacote de compromisso climático do Brasil, a Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC), será oficialmente divulgado ainda neste ano – possivelmente na COP-29, no Azerbaijão, em novembro.

O Brasil abriu os discursos de chefes na sede da ONU em Nova York, como manda a tradição da entidade. Em análise detalhada com lupa de política climática, a Política por Inteiro considera que o discurso foi bom – até um pouco melhor que o de 2023 – mas faltou ousadia: Lula perdeu a oportunidade de fazer uma conclamação enérgica à ação climática de cada um dos países presentes na maior arena da diplomacia mundial. Emprestar um pouco da contundência que ele próprio, Lula, utiliza para – com razão – exigir uma reforma estrutural das Nações Unidas, seria um ingrediente-chave para o Brasil se posicionar como anfitrião da COP-30 e um pretenso líder da geopolítica climática global. Não haveria momento mais oportuno para tanto: as nações signatárias da Convenção do Clima têm de apresentar suas novas NDCs em até cinco meses, e elas precisam ser mais ambiciosas que as atuais.

Enquanto isso, no Rio de Janeiro – e na contramão do que Lula sustentava em NY – a realpolitik se impunha: o governo não apenas patrocinava a Rio Oil & Gas, uma espécie de feira internacional dedicada a fomentar a expansão da exploração de óleo e gás no planeta, como também aproveitava o holofote de anfitrião para anunciar normas que “incentivam” e “revitalizam” as atividades de exploração e produção de petróleo e gás brasileiros. Sob o nome de “Potencializa E&P” (“Exploração & Produção”), o Ministério de Minas e Energia (MME) institucionaliza uma conta impagável: mais fósseis queimando, mais lucros para o setor e mais fundo o buraco no cheque especial do clima. MME e Petrobras não demonstram como essa poupança às avessas será coberta. No Rio Oil & Gas, ministério e estatal insistiram em seguir hasteando uma bandeira que não pára em pé: a ideia de “liderar uma transição energética justa” sem, no entanto, discutir como o país transitará para longe das reservas onshore e offshore de fósseis que ampliam as emissões globais, onde quer que queimem. Os eventos climáticos extremos continuarão chegando sem parar, como boletos no final de mês, a cada um de nós.

Dessa forma, a semana foi marcada por uma inevitável e aguda dicotomia. Em Nova York, onde também ocorreu a edição anual da Climate Week NYC, líderes globais debateram como inspirar e empurrar o mundo para saídas à crise climática. No Rio, gente graúda do setor de óleo e gás defendeu estratégias para prolongar atividades causadoras do problema.

Houve quem esteve em Nova York e no Rio. O CEO global da Shell, antes de vir ao Brasil, reuniu-se com Lula em Nova York, fora da agenda oficial do presidente. Questionado, dias depois, Lula disse não haver contradição entre seu discurso pró-clima e o diálogo com “uma empresa que está há 100 anos no Brasil” e que “tem contribuído para a política energética do país”, respondeu ao Valor Econômico.

A questão é que a política energética de hoje não pode mais sustentar modelos do século passado. “Transitar para longe dos combustíveis fósseis” da decisão de Dubai, no ano passado, é uma caminhada de início imediato. Lula assinou um Pacto pela Transformação Ecológica, há menos de um mês, em que consta “acelerar o processo de transição energética justa, com investimento em descarbonização da matriz”. Precisa ser coerente.

Movimentar-se depois não apenas custará mais dinheiro para adaptar o Brasil a uma desordem climática cada vez maior. Custará crescimento econômico. Custará a redução da desigualdade social e da fome que Lula tão firme e acertadamente defende. Custará vidas.

Além de cientificamente impossível, é desgastante ao Brasil insistir ao mundo de que é possível assobiar e chupar cana ao mesmo tempo.

TÁ LÁ NO GRÁFICO

Nesta semana, a Agência Nacional de Águas (ANA) decretou situação de escassez hídrica para o trecho baixo do rio Tapajós. Com isso, chega a quatro o total de rios em regime crítico: antes, o Paraguai, o Madeira e o Purus já haviam sido enquadrados pela agência até, pelo menos, final do ano.

A situação preocupa e, no caso do Baixo Tapajós, os maiores impactos diretos são:

  • Logísticos (hidrovia afetada), especialmente no terço Itaituba-Santarém, por onde, aliás, escoa grande parte da produção graneleira nacional;
  • Hidrelétricos;
  • Produção agropecuária. 

As decretações de situação de escassez hídrica funcionam para permitir que os órgãos públicos adotem medidas de contingência de recursos, adotem mecanismos tarifários especiais, regulem a relação entre oferta e demanda hídrica e se preparem antecipadamente para situações que envolvam calamidade ou emergência à ação da Defesa Civil.

A escassez hídrica é uma das consequências da pior seca da história recente do país, como mostram dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), divulgados nesta semana no boletim número 13 sobre o combate aos incêndios na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado, do governo federal.

No Tá Lá no Gráfico desta semana, um panorama da seca no Brasil:

FRASE DA SEMANA

“É impossível 'desplanetizar' nossa vida em comum. Estamos condenados à interdependência da mudança climática. O planeta já não espera para cobrar da próxima geração e está farto de acordos climáticos não cumpridos, e de metas de carbono negligenciadas.”

Presidente Lula, em discurso na 79ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, no último dia 24 de setembro. Foto: Ricardo Stuckert/PR. Reprodução: Agência Brasil.

ABC DO CLIMA

Crédito de Carbono   Um projeto comprova que consegue emitir menos (ou remover mais) gases de efeito estufa do que teria ocorrido se ele, o projeto, não existisse. Muitas vezes, esse tipo de projeto não é viável economicamente por si só. Como apoio, criou-se o crédito de carbono. No começo do século, esses projetos eram registrados junto a um dos braços climáticos da ONU, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Na medida em que o projeto fosse operacionalizado – por exemplo, uma planta eólica – o MDL emitia seus créditos de carbono em nome dos donos do projeto. Esses créditos podiam ser vendidos para empresas que tivessem obrigações de redução de emissão – como as atuantes na Europa e no Japão. Ao mesmo tempo apareceram outras entidades sem fins lucrativos que também registravam projetos e emitiam créditos de carbono. Estes, em geral, eram comprados por empresas sem obrigações legais, mas que queriam compensar as emissões de suas atividades. Essas últimas transações compõem o que se chama de Mercado Voluntário. O Acordo de Paris tem, no seu artigo 6.4, a evolução do MDL. A principal diferença é a necessidade de evitar uma dupla contagem. Um projeto num dado país comprova que reduziu emissões. Essa redução irá aparecer no inventário de emissões desse país. Caso o projeto venda o crédito de carbono para uma empresa de outro país, isso lhe dá o direito de usá-lo para cumprir seus compromissos climáticos. Os dois países iriam declarar a mesma redução de emissão. Para evitar essa dupla contagem, Paris prevê que o país do projeto deve assumir o compromisso de não contabilizar essa redução como sua.

MONITOR DE ATOS PÚBLICOS

O Monitor de Atos Públicos captou 10 normas relevantes para a agenda climática entre os dias 23 a 27 de setembro. Os temas foram bem distribuídos ao longo da semana, com leve destaque para Terras e Territórios, com 4 atos, e Energia, com 2 atos. A classe Resposta foi a mais recorrente da semana, com 4 normas. As medidas são resultantes do emprego da FNSP, em apoio à Funai no estado do Mato Grosso do Sul e na região da Amacro, no combate aos incêndios florestais. Também como resposta aos eventos climáticos foi publicada a Lei 14.981, que cria condições econômicas especiais para os municípios do Rio Grande do Sul atingidos por emergência ou calamidade pública e a declaração de escassez hídrica no Rio Tapajós.

“Oi, sumido!”

O Programa de Parcerias e Investimentos (PPI), vinculado à Presidência da República, reapareceu nesta semana. Desde fevereiro sem movimentos relevantes para política climática, o programa incorporou uma Unidade de Conservação (Floresta Nacional do Bom Futuro) em Rondônia, além de duas hidrovias – nos rios Madeira e Tocantins, justamente dois dos que mais têm sofrido com a estiagem na Amazônia. A partir de agora, essas áreas estarão na “primeira vitrine” do governo para captar investimentos privados. Pelos lados do governo, o desafio é garantir integridade e viabilidade que tornem possível celebrar parcerias público-privadas. A Floresta Nacional precisa se manter conservada para desenvolvimento de atividades de manejo florestal, estoque e remoção de carbono, enquanto as hidrovias precisam de que os rios não sequem.

Vale dizer que desde o dia 1º de julho já havia recomendações formais do conselho do programa para que tanto as hidrovias quanto a floresta nacional fossem arroladas, o que só se efetivou 88 dias depois.

Avanço histórico na questão de Alcântara

Uma semana após o Estado brasileiro reconhecer oficialmente o Território Quilombola de Alcântara, no Maranhão, um decreto determina que imóveis rurais situados dentro do quilombo devam ser desapropriados. Trata-se de um passo indispensável para sacramentar os direitos de comunidades negras, reduzindo tensões e conflitos. O caso de Alcântara guarda especificidades e se arrastava há pelo menos quatro décadas, desde o regime militar. Agora, com a situação jurídica e politicamente favorável aos quilombolas, Lula falou em “recuperar o tempo perdido”.

BRASIL

Guarani-Kaiowá conquistam acordo histórico

Um acordo histórico definiu uma solução para o conflito sobre a demarcação da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, em Mato Grosso do Sul. Representantes dos guarani-kaiowá, de proprietários rurais, do Governo Federal – incluindo a Advocacia Geral da União (AGU) e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) – e do Estado concordaram com os termos para a indenização, a saída dos proprietários e a entrada dos indígenas no território.

O acordo selado no Supremo Tribunal Federal (STF), em audiência comandada pelo ministro Gilmar Mendes, visa a encerrar um conflito em que pelo menos quatro indígenas foram assassinados. A última morte foi do jovem Neri da Silva, de 22 anos, na semana passada, baleado na cabeça. Uma cerimônia tradicional em memória dele está garantida no acordo para este sábado. Os indígenas entrarão na área sob disputa para esse fim e sairão, retornando definitivamente após a saída dos proprietários rurais. Estes, por sua vez, deverão se retirar 15 dias após serem indenizados. Eles receberão R$ 27,8 milhões por benfeitorias apontadas em avaliação da Funai em 2005, e mais R$ 101 milhões pela terra nua – ainda que a União tenha declarado que não concorda com o dever de prover essa indenização. O Estado de Mato Grosso do Sul, que também manifestou discordância,  desembolsará R$ 16 milhões.

Recursos para emergência climática

O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2025, encaminhado ao Congresso, prevê o valor recorde de R$ 21,2 bilhões para financiar projetos de mitigação das emissões de gases de efeito estufa (GEE) e de adaptação às mudanças climáticas. Embora o recurso previsto no PLOA para o enfrentamento da emergência climática tenha crescido 57%, o valor para gestão de riscos e desastres registrou queda. No blog da Política por Inteiro, confira uma análise detalhada dos recursos propostos para a agenda climática.

A Presidência do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE) 

Ventilou-se em canais da grande mídia brasileira a existência de um acordo no Senado Federal para que o Órgão Superior do SBCE fosse composto pelo Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM). O acordo vem como outra tentativa do corpo parlamentar para acelerar a tramitação do Projeto de Lei n° 182/2024. Na esteira das análises feitas pelo Instituto Talanoa, publicamos a Nota Técnica nº 01/2023, na qual nossos especialistas recomendam a Presidência por intermédio de um corpo colegiado. Na oportunidade, defendemos a alocação na Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima, ampliando sua participação social.

Visto que o CIM sofreu remodelação para maior participação extrafederal, com a inserção das Câmaras de Participação Social; da de Articulação Interfederativa; e da Câmara de Assessoramento Científico, a avaliação é de que as recomendações voltadas para a comissão estão agora contempladas no comitê.

Ainda, no mesmo acordo legislativo, consta que a Presidência do SBCE no CIM estará a cargo do Ministério da Fazenda. Outro ponto positivo, visto que o órgão responsável pela política, administração e fiscalização da macroeconomia brasileira  assumirá a responsabilidade por coordenar os esforços de descarbonização de setores produtivos.

Não se trata, portanto, de uma perda de espaço do Ministério do Meio Ambiente e de Mudança do Clima (MMA), que nunca foi indicado para a Presidência do mecanismo, umas vez que as competências, as capacidades institucionais e a preponderância em negociações, do SBCE são centralmente de economia política.

MUNDO

Lula também fala ao G20

No dia seguinte à fala na Assembleia Geral da ONU, Lula discursou em evento com ministros das Relações Exteriores do G20, também na sede das Nações Unidas em Nova York. O presidente brasileiro afirmou que o país, atualmente na presidência do grupo, está trabalhando para avançar a agenda para a redução das desigualdades com base em três eixos: inclusão social, enfrentamento da mudança do clima e reforma da governança global. Ele voltou a destacar a necessidade de conter o aquecimento global a 1,5ºC em relação ao período pré-industrial. “O G20 é responsável por 80% das emissões globais de gases de efeito estufa. Sua liderança na missão de conter o aquecimento a um grau e meio fará a diferença para todo o planeta. O Brasil trouxe para o debate climático atores como bancos centrais e bancos públicos de desenvolvimento, para garantir uma transição justa”, afirmou.

Roteiro para a Missão 1.5

Na quinta-feira (26), a Troika de Presidências das Conferências das Partes do Clima (COP) – composta pelos Emirados Árabes Unidos, pelo Azerbaijão e pelo Brasil – realizou o evento “Roadmap to Mission 1.5”. A ideia seria convocar as Partes e outras interessadas para estimular a ambição na próxima rodada de Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) antes da COP29 ou de fevereiro de 2025, prazo de envio das novas NDCs.

Era esperando que a própria Troika demonstrasse sinais fortes de compromisso e liderança. Ainda que o Brasil tenha anunciado o adiantamento da entrega de sua nova NDC para a COP29, não houve nenhum sinal forte ou demonstração de liderança robusta que alavancasse o conjunto de países rumo à escalada. Uma vez mais, a avaliação geral dos espectadores foi de “mais do mesmo”. Nada novo foi dito, nenhuma convocação foi feita, nada disruptivo foi proposto. Tão somente comunicamos o que era previsto: meta economy-wide, diminuição robusta de emissões de carbono até 2030 e neutralidade climática até 2050.

Isso não é escalar ambição, na verdade, é pouca coisa mais do que fazer o mínimo.

Missão 2025

O Instituto Talanoa apoia a Missão 2025, um movimento que já reúne mais de 70 empresas, investidores, governos subnacionais, cientistas, especialistas em dados e líderes da sociedade civil de todo o mundo comprometidos com a missão de instigar os governos a elaborarem novos planos climáticos nacionais (NDC – Contribuição Nacionalmente Determinada) mais ambiciosos, em linha com a meta do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global a 1,5 °C. Durante a Climate Week, em Nova York, o grupo publicou um documento com três políticas positivas de investimento que podem dar ao mercado a confiança necessária para investir em grande escala na transição energética. Clique aqui para informações sobre a Missão 2025.

MONITOR DE DESASTRES

O Monitor de Desastres captou 11 atos de reconhecimento de emergência decorrentes de eventos climáticos extremos, que atingiram 113 municípios.

Nesta semana, a tipologia incêndios florestais foi a mais recorrente, com 69 municípios, sobretudo no Mato Grosso. Estiagem se estende pelo país, sobretudo no estado do Amazonas e na região Nordeste. Foram registrados também dois reconhecimentos por seca – um em Minas Gerais e outro em Alagoas.

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Nota explicativa: os dados registrados no Monitor de Desastres referem-se única e exclusivamente às situações de emergência ou calamidade pública reconhecidos oficialmente pela Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil/MDIC nesta semana. Eventualmente, é possível que desastres ocorridos na mesma semana não sejam contabilizados, dado que o reconhecimento do governo federal leva alguns dias para ser publicado.

TALANOA NA MÍDIA

O Eco No Podcast Entrando no Clima, Marta Salomon, especialista sênior da Talanoa, fala sobre os recordes de focos de calor no Brasil.
CNN Brasil Em entrevista para a CNN, Natalie Unterstell, presidente da Talanoa, comenta sobre as metas climáticas (NDCs) do Brasil.
Rádio Gaúcha/Zero Hora Usar um pouquinho menos de petróleo não é suficiente, diz Natalie Unterstell, à Rádio Gaúcha.
Terra Agora (UOL) Liuca Yonaha, vice-presidente da Talanoa, conversou com Cazé Pecini sobre o discurso de Lula na Assembleia Geral da ONU.
Nexo Jornal Avaliando também o discurso de Lula na ONU, Taciana Stec, analista de política pública na Talanoa, conversou com o Nexo.
(O texto deste Boletim Semanal é feito totalmente por humanos, e para humanos)

Bom fim de semana,
Equipe POLÍTICA POR INTEIRO

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