Em uma de suas canções mais bonitas, o mineiro Beto Guedes dizia, lá pelo início dos anos 80, “Anda…/ Quero te dizer nenhum segredo / Falo desse chão da nossa casa / Vem que tá na hora de arrumar…”. O trecho de “O Sal da Terra” parece se encaixar perfeitamente no Programa Terra da Gente, lançado pelo governo federal nesta semana. A medida, que havia sido prometida para decolar no ano passado, objetiva “arrumar” parte de uma situação que não é nenhum segredo: a destinação de terras públicas no país.
O Programa converge com um dos 10 pontos que a equipe do Instituto Talanoa sugeriu ao Brasil, ainda durante a transição de governo, no final de 2022. A expectativa é de ampliação do número de Territórios Quilombolas e áreas de uso e domínio de povos e comunidades tradicionais, que são chaves para a contenção do desmatamento e, ao mesmo tempo, para o fortalecimento da produção rural em bases sustentáveis.
Com um atraso de 10 meses, o programa deve dinamizar o ritmo do reconhecimento de direitos sobre a terra para grupos histórica e economicamente fragilizados, além de potencialmente acelerar reforma agrária e atuar para reduzir a extensão de terras improdutivas no Brasil.
No entanto, alguns alertas devem ser considerados: o primeiro deles está relacionado aos custos de desapropriações de imóveis rurais, quase sempre muito elevados e que impactam sobremaneira o orçamento público. O segundo é a necessidade de reforço desse mesmo orçamento para o fortalecimento da assistência técnica pública e gratuita a essas populações, que alavanque a produção agrícola e políticas de desenvolvimento local. Em ambos os casos, a conta terá que fechar.
Outro aspecto positivo trazido pelo decreto é a busca por cooperação federativa, por meio de “ações para a criação de projetos de assentamentos e o reconhecimento de territórios quilombolas e de outros povos e comunidades tradicionais em terras públicas”. É sabido que aproximar os diferentes entes federados é um modus operandi quase que obrigatório para qualquer política exitosa nos temas agrário e fundiário. No entanto, a cooperação buscada pelo governo federal encontrará os mais diferentes desafios, que vão desde a institucionalidade frágil de órgãos recém-criados e com baixa capilaridade (nos quais estão instituições pró-política indígena, quilombola e de agricultura familiar na União e nos estados), até a ingerência partidária em órgãos de ATER nos estados, usualmente “rifados” para partidos das bases governistas estaduais sem a menor experiência ou compromisso com a agenda.
No campo das finanças, o Climainfo destacou importante estudo produzido pelo Greenpeace, que entre 2018 e 2022 analisou o financiamento bancário para atividades que envolvem desmatamento em áreas protegidas na Amazônia. É importante lembrar que a Resolução CMN nº. 5.081, de 2023, atualiza o Manual de Crédito Rural do Banco Central brasileiro, ao vetar financiamento para imóveis rurais sobrepostos a Unidades de Conservação cuja categoria, zoneamento ou plano de manejo não sejam condizentes com os empreendimentos que buscam financiamento.
A Política por Inteiro considera que essa resolução foi uma das normas mais importantes de 2023, tamanho seu impacto no sistema financeiro nacional e potencial de efetividade para a agenda climática. No entanto, embora lançada em junho, sua eficácia para UCs só se iniciou em 02/01/2024. Logo, apesar de o recorte do estudo do Greenpeace ter sido 2018-2022, pode ser que infelizmente tenhamos “furos” (bancos financiando desmatamento em áreas protegidas) durante todo o ano de 2023. Moral da história: mapear e investigar fluxos financeiros segue sendo essencial no Brasil.
MONITOR DE ATOS PÚBLICOS
O Monitor de Atos Públicos captou 7 normas relevantes para a agenda climática entre os dias 15 e 19 de abril. A classe mais frequente da semana foi Regulação, com 3 atos, incluindo as demarcações de Terras Indígenas e o Programa Terra da Gente. Os temas mais captados foram Terras e Territórios e Florestas e Vegetação, com 3 normas cada.
Nota metodológica: A partir de janeiro de 2024, as normas de desastres, referentes aos reconhecimentos de situação de emergência nos municípios por eventos meteorológicos e climáticos extremos, deixam de ser contabilizadas no Monitor de Atos Públicos. O monitoramento contínuo passa a ser realizado exclusivamente no Monitor de Desastres. |
Comissão Nacional de REDD atualiza normas
Já haviam sido aprovadas em novembro de 2023, mas só nesta semana foram publicadas duas importantes resoluções da Comissão Nacional para o mecanismo de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (Conaredd) para o funcionamento do REDD. As Resoluções Conaredd 13/2023 e 14/2023 recriam (atualizam) grupos de trabalho técnicos (GTTs) para os temas repartição de benefícios e salvaguardas socioambientais, respectivamente. As resoluções foram criadas abaixo do decreto “da vez” sobre a Conaredd, que também vem sendo recriado (ou atualizado) ao longo de quase 10 anos.
A expectativa é de que os GTTs produzam insumos suficientes para uma política nacional baseada em resultados de redução de emissões provenientes do setor de florestas, ampliando as captações internacionais e canalizando recursos para governos e comunidades.
Uma terceira resolução, sobre Mensuração, Reporte e Verificação (MRV) deve sair nas próximas semanas, dando continuidade ao processo de atualização da Conaredd.
Na ANP, há prioridades e prioridades…
Nesta semana, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) fixou não 90, mas 900 (sim, no-ve-cen-tos) dias para “debater e definir” a estratégia para o Programa Nacional do Hidrogênio – PNH2. A portaria, publicada em Diário Oficial, veio prorrogar a existência do Grupo de Trabalho da agência para a PNH2, criado em outubro de 2022, e que já tinha prazo de funcionamento de 180 dias, prorrogável por igual período. Trocando em miúdos: um GT para incríveis 1.260 dias para “debate” e “definição” de estratégia.
Mas, calma… Ainda há uma cereja de bolo: a portaria ainda acrescenta (mais um!) prazo de prorrogação, de 365 dias, adicionais aos 900. Se isso tudo for somado, a ANP considera razoável que sua contribuição para o programa de hidrogênio do Brasil se dê até 2 de outubro de 2027. No próximo mandato presidencial, portanto.
Governo anuncia demarcação de duas Terras Indígenas, mas podiam ser seis
Em abril de 2023, o Decreto Federal nº. 11.509/2023 fez com que Lula recriasse, pela terceira vez, o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), nascido originalmente durante seu primeiro mandato, em 2006 (à época, como Comissão). Nesta semana, quase 1 ano e 500 decretos presidenciais depois, o governo inaugura a casa dos “decretos 12 mil” para reconhecer duas Terras Indígenas, nos estados de Bahia e Mato Grosso, via decretos 12.000 e 12.001, respectivamente. Somadas, as TIs com demarcação oficializada contabilizam mais 34.000 hectares de áreas sob regime especial de proteção, cabendo agora ao Estado brasileiro fazer chegar políticas públicas que garantam direitos dos povos originários. Se assistidos, indígenas ampliam as chances de que as emissões brasileiras no setor Uso da Terra e Florestas sejam contidas, especialmente na Amazônia e no Cerrado.
Na ocasião, Lula também empossou os representantes do CNPI e disse que “não é a Sônia [Ministra dos Povos Indígenas], a Joênia [Presidente da Funai] ou o presidente da República… São vocês (Conselho) que agora passam a ser uma espécie de ‘Comissão da Verdade’ para as discussões sobre as questões indígenas desse país”, em alusão à comissão criada para investigar as violações de direitos humanos praticadas no último período ditatorial brasileiro.
Quanto à não-oficialização da demarcação das outras quatro Terras Indígenas “saindo do forno” na Casa Civil, Lula disse que dois “governadores aliados” pediram mais tempo, e que esse tempo será concedido. Em seguida, sem citar nome, disse que outro governador “não quis atender a ministra Sônia”, e que o chamará para “ter uma conversa com ele” em busca da “melhor solução possível”. Na análise de conjuntura amazônica lançada pela Política por Inteiro recentemente, há pistas sobre quais seriam os governadores mencionados por Lula.
Em nossa análise, entendemos que o discurso de aparente precaução feito por Lula, quando tentava justificar a não-oficialização das outras demarcações, significa, na prática, o navegar pelos meandros da realpolitk, especialmente em ano eleitoral: muitos governadores são empresários no ramo do agronegócio, ou têm ligações próximas com a atividade, e Lula não deseja entrar em rota de colisão nem com as lideranças políticas dos estados, tampouco com o empresariado, do qual precisa se aproximar para distensionar a corda, esticada por Bolsonaro por anos e que comprometeu a afinidade de Lula com lideranças do agronegócio.
MUNDO
Lula apoia Petro. O Gustavo, desta vez (ufa!)
A convite do governo colombiano, Lula esteve presente em agendas em Bogotá, em que aproveitou para reforçar os laços de cooperação entre os dois países. Além de participar de uma Feira do Livro na capital colombiana e de um Fórum Empresarial naquele país, a conversa com o presidente colombiano, Gustavo Petro, teve o tom de estimular uma diplomacia que amplie os resultados de “iniciativas, acordos e instrumentos existentes” entre os países e, ainda, de reforçar a OTCA como o organismo ideal para motivar cooperação entre países amazônicos, no propósito de fortalecer a institucionalidade daquela organização.
Na ocasião, Lula e Marina tiveram de Petro a confirmação de adesão da Colômbia ao Fundo Florestas Tropicais para Sempre (FFTS), fortalecendo a iniciativa lançada pelo Brasil durante a COP28, em dezembro último, e que ainda está em fase de preparação. O Itamaraty discorreu sobre os detalhes do encontro.
MONITOR DE DESASTRES
O Monitor de Desastres captou 6 atos de reconhecimento de situação de emergência ou calamidade pública decorrentes de eventos climáticos ou meteorológicos extremos, ocorridos em 34 municípios. As tempestades voltaram ao topo do ranking, sendo registradas em diversas regiões. A estiagem segue atingindo o Nordeste e o estado de Roraima, que ainda sofre com uma severa estiagem em plena época de chuva na região amazônica. Os registros de emergência pela epidemia da dengue seguem sendo observados, nesta semana concentrados no Sul do país.
LEGISLATIVO
PL da Economia Circular se move
O Projeto de Lei que institui a Política Nacional de Economia Circular (PNEC) chegou de fato à Câmara dos Deputados. Dizemos “de fato” porque o projeto havia sido aprovado no Senado federal em março deste ano, após 20 meses de tramitação. Foi encaminhado à Câmara dos Deputados no mesmo mês em que foi apensado ao PL 1755/2022, que estabelece o Programa de Incentivo à Economia Circular. Compreendido como maior e mais robusto que um Programa, a Política Nacional de Economia Circular é defendida pelo governo federal, por diferentes setores empresariais e pela sociedade civil organizada. Em razão do exposto, as Deputadas Tábata Amaral (PSB/SP) e Jandira Feghali (PCdoB/RJ) solicitaram a desapensação dos projetos.
Compreende-se que partes úteis do 1755/2022 podem ser utilizadas na tentativa de avançar a PNEC, ao passo que a mera aprovação de um Programa seria insuficiente para os esforços ambientais e de aumento de ambição de ESG das empresas. Vista essa decisão, considera-se que há um “acordo de fato” para a tramitação da Política. A matéria possui regime de tramitação “prioritário” e deverá ser aprovada no Plenário da Câmara dos Deputados, assim que finalizarem os ritos nas Comissões Permanentes. No entanto, até o momento, ainda não foi despachada para as Comissões Permanentes responsáveis por sua tramitação.
Mais um PL para reduzir Unidades de Conservação
Os anos se passam e eles não param de surgir. Tornaram-se tão frequentes no mundo que estudiosos criaram um nome específico para identificá-los: são os chamados PADDDs, da sigla em inglês, Processos de Redução, Rebaixamento e Eliminação de Áreas Protegidas. No caso do Brasil, esses Projetos de Lei – tanto federais, quanto estaduais – têm com frequência incidido sobre as chamadas Unidades de Conservação (UCs). O PL da vez tem autoria do senador Lucas Barreto (PSD/AP), e se dedica a reduzir o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, criado em 2002 e que se estende por 3,8 milhões de hectares no Extremo Norte do Brasil, entre os estados do Amapá e do Pará. Trata-se de mais um movimento que sinaliza uma tendência preocupante: o enfraquecimento da política de áreas protegidas do Brasil, que segue sem vibrar desde 2018, em comparação com décadas anteriores. Não só novas Unidades de Conservação não vêm sendo criadas com frequência, como as já criadas vêm sofrendo ameaças, ano a ano.
Já que estamos falando em lei, é sempre importante lembrar que tanto em matéria de Direito Ambiental quanto em matéria de Direitos Humanos, há um princípio que deve nortear a coletividade: o da vedação do retrocesso. Esse princípio também é adotado em matéria de Direito Internacional, especialmente no âmbito das negociações vinculadas à Convenção do Clima, para evitar refugos de ambição (leia-se NDCs) dos países.
Se a Ciência nos mostra que não há outro caminho para enfrentar a crise climática que não seja o do aumento progressivo da ambição dos países por um desenvolvimento de baixas emissões, por que uma UC que vem sendo pressionada por atividades de garimpo deveria ter seus limites reduzidos?
Além do risco de fornecer precedentes ao retrocesso ambiental (algo como: “se ali pode, aqui pode também!”), é muito provável que, caso a proposta seja aprovada no Congresso, o STF tenha que trabalhar para declarar inconstitucional a lei, intensificando ainda mais os embaraços entre Parlamentares e Supremo.
Onde estariam os governadores e seus “discursos de COP” quando o assunto é articulação com as bancadas parlamentares de seus estados? Em parte, PADDDs são reflexos de Executivos estaduais que desconsideram a essencialidade de pensar políticas públicas em conjunto com o Legislativo.
Bom fim de semana,
Equipe POLÍTICA POR INTEIRO