A própria sobrevivência da humanidade está em jogo, mas esse grau de urgência parece não bastar para a construção de um consenso na segunda parte da COP15 da Biodiversidade. Essa é a opinião do dr. Braulio Dias. Professor de ecologia da Universidade de Brasília, atualmente diretor-presidente da Fundação Pró-Natureza (Funatura) e presidente do conselho global da Birdlife International, Dias foi secretário executivo da Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica (CDB) de 2012 a 2017 e secretário nacional de Biodiversidade e Florestas no Ministério do Meio Ambiente entre 2010 e 2011.
Em entrevista ao Blog da Política Por Inteiro, para lembrar o Dia Internacional da Diversidade Biológica, comemorado neste domingo (22), Braulio Dias fala sobre o que está em jogo na COP 15, que ainda não tem data definida, mas deve ocorrer entre agosto e setembro em Kunming na China. O professor aponta as controversas em debate e as dificuldades para os países chegarem a acordos que os comprometam a reverter o colapso da biodiversidade – muitos nem sequer admitem que haja uma crise de perda de biodiversidade.
Política Por Inteiro: O que está em jogo na COP15?
Braulio Dias: Muita coisa, incluindo a própria sobrevivência da humanidade:
1. Se a comunidade internacional será capaz de sustar o colapso da biodiversidade e manter os impactos antrópicos dentro dos limites planetários de sustentabilidade;
2. Se conseguiremos conservar e restaurar os ecossistemas, as espécies e sua variabilidade genética;
3. Se conseguiremos manter e restabelecer os serviços ecossistêmicos;
4. Se conseguiremos criar ambientes que promovam o bem-estar da humanidade;
5. Se conseguiremos estabelecer sistemas de produção de alimentos resilientes às mudanças do clima;
6. Se conseguiremos reduzir o aparecimento de novos surtos de epidemias resultantes da transferência de doenças de animais domesticados e animais silvestres (zoonoses).
Política Por Inteiro: Quais as metas mais controversas e por quê?
Braulio Dias: Metade das 45 recomendações para a COP15 está entulhada de colchetes e muitas envolvem posições conflitantes aparentemente intransponíveis. Foi aprovada apenas mais uma reunião de uma semana de negociação presencial em Nairobi em junho de 2022 sobre a Nova Agenda Global de Biodiversidade (GBF) e sobre o uso das informações sobre sequências digitais de recursos genéticos (DSI).
Aparentemente, não há boa vontade de muitos países de negociar consensos. E as decisões da CDB só podem ser adotadas por consenso, pois os países ricos vetaram o uso de votação! Na Conferência de Genebra, em março de 2022, não houve sequer concordância sobre o passado e o presente, quanto mais sobre o futuro. O Governo da Austrália, por exemplo, recusou-se a admitir que existe uma crise de perda da biodiversidade e não houve consenso sobre os avanços com as Metas de Aichi na década passada.
Os países ricos se recusam a assumir compromisso para ampliar significativamente a mobilização de recursos financeiros para apoiar a implementação da Nova Agenda Global de Biodiversidade. Foi anunciado recentemente um aumento de apenas 24% na renovação do capital do Fundo Mundial para o Meio Ambiente (GEF), lembrando que apenas cerca de um quarto dos recursos do GEF é para biodiversidade.
O Grupo Africano anunciou na Conferência de Genebra que vai boicotar as decisões da COP 15 se não for concluído um acordo sobre respeito aos países de origem dos recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais associados em relação ao uso das informações sobre sequências digitais de recursos genéticos (DSI).
Política Por Inteiro: Qual o posicionamento atual do Brasil nas negociações?
Braulio Dias: O Itamaraty tem tido uma postura construtiva nas negociações preparatórias para a COP15 da CDB e tem defendido basicamente as mesmas propostas de sempre:
1. Dar mesma atenção aos três objetivos da CDB;
2. Respeito às soberanias nacionais;
3. Respeito às necessidades dos países em desenvolvimento;
4. Respeito ao Princípio das Responsabilidades Comuns, mas Diferenciadas;
5. Respeito aos mandatos das diferentes convenções internacionais;
6. Fazer uso de conceitos já acordados em decisões da CDB;
7. Adotar linha de base justa em face das assimetrias entre os países;
8. Adotar medidas arrojadas de apoio à implementação;
9. Ampliação significativa da mobilização de recursos financeiros;
10. Reforçar implementação da Repartição de Benefícios pelo uso dos Recursos Genéticos e dos Conhecimentos Tradicionais Associados.
Adicionalmente, o Governo do Brasil apresentou na Conferência de Genebra em março de 2022 proposta de criação de um Fundo Global de Biodiversidade (conforme previsto no Artigo 21 da CDB, mas nunca implementado) – O Grupo Africano apoiou. O Itamaraty também propôs a criação de um mecanismo global de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) para incentivar restauração e evitar desmatamentos legais.
Por outro lado, o Itamaraty questionou a adoção de meta para oceanos além das áreas sob jurisdição nacional, questionou metas de redução de impactos de setores econômicos (mainstream), em particular a redução de uso de fertilizantes químicos e agrotóxicos químicos. O Itamaraty tem a obrigação de ouvir e defender os interesses dos diferentes setores do governo e, infelizmente, o atual governo não tem compromisso em geral com a proteção da biodiversidade. Infelizmente, também, o Ministério do Meio Ambiente neste governo tem se mostrado praticamente ausente das negociações internacionais sobre biodiversidade.
Política Por Inteiro: O que esperar de Nairobi e Kunming?
Braulio Dias: A pergunta se refere à 4ª reunião do Grupo Aberto de Negociação sobre a Agenda Global de Biodiversidade Pós-2020 a realizar-se em Nairobi, Quênia, entre 21 e 26 de junho deste ano, e à segunda parte da COP15 da CDB a realizar-se em Kunming, capital da província de Yunnan, no sudoeste da China (a província mais rica em biodiversidade da China), em data ainda não confirmada, mas possivelmente entre fins de agosto e início de setembro deste ano.
Infelizmente, a COP15 está cheirando a fracasso, como ocorreu com a COP 15 de Clima em Copenhagem em 2009! Não quero ser agourento, mas só vejo duas possibilidades: 1. adiar a COP para 2023 para fazer novas rodadas de negociação presencial, incluindo algumas reuniões informais de países-chave para costurar acordos ambiciosos; ou 2. realizar a COP neste ano com decisões sem ambição, sem dinheiro e sem acordo sobre DSI.
Ademais, com a guerra na Ucrânia, não vejo clima na esfera global para se priorizar os temas ambientais. Reportagem recente do The Guardian revelou que as grandes empresas petrolíferas pretendem ampliar substancialmente seus investimentos para ampliar a produção de petróleo nesta e na próxima década. Nesse estudo e reportagem do The Guardian, a Petrobras aparece como a quarta empresa petrolífera com maiores investimentos para a ampliação da extração de petróleo, e no ano passado a diretoria da Petrobras decidiu abandonar investimentos em fontes renováveis de energia!
Uma solução satisfatória dos impasses da COP15 vai necessitar mais protagonismo e liderança do Brasil e da China.
>> Biodiversidade sob ameaça no Brasil e propostas para o futuro