Em janeiro, pela PORTARIA SAP/MAPA Nº 9, DE 14 DE JANEIRO DE 2021, havia sido suspensa a utilização de toda e qualquer rede de arrasto tracionada por embarcações motorizadas nas 12 milhas náuticas da faixa marítima da zona costeira do Estado do Rio Grande do Sul, até o início da implementação do plano.
Em dezembro, relatamos a discussão judicial acerca do tema. Trazemos aqui novamente um breve histórico das discussões acerca do tema para, assim, apontarmos os aspectos críticos do Plano para a Retomada Sustentável da Atividade de Pesca de Arrasto na Costa do Rio Grande do Sul.
A Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável da Pesca no Estado do Rio Grande do Sul
O Estado do Rio Grande do Sul publicou em 2018 a Lei Estadual 15.223/2018, que “Institui a Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável da Pesca no Estado do Rio Grande do Sul e cria o Fundo Estadual da Pesca”. A lei tem como objetivo “promover o desenvolvimento sustentável da atividade pesqueira como forma de promoção de programas de inclusão social, de qualidade de vida das comunidades pesqueiras, de geração de trabalho e renda e de conservação da biodiversidade aquática para o usufruto desta e das gerações futuras” (art. 1º, caput).
Conforme notícia da Oceana, “a Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável da Pesca (Lei 15.223/2018) foi construída por pescadores artesanais e armadores de pesca com o apoio da Oceana” (grifo nosso). Destacam ainda: “Segundo os presidentes das colônias de pesca do estado, o setor enfrenta um colapso: as práticas danosas de pesca causaram a redução de diversas espécies e mais de 90% das indústrias de pescado do estado fecharam as portas nos últimos 30 anos” (grifo nosso).
A lei estabelece as atividades de pesca que são proibidas, dentre as quais “toda e qualquer rede de arrasto tracionada por embarcações motorizadas, em todo território do Estado do Rio Grande do Sul, incluindo as 12 milhas náuticas da faixa marítima da zona costeira do Estado” (art. 30, alínea “e”) (grifo nosso).
- Discussão judicial no Supremo Tribunal Federal (STF)
O Partido Liberal (PL) entrou no STF com a Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.218 (ADI), que tem como objetivo questionar a legitimidade jurídico-constitucional do parágrafo único do art. 1º e da alínea “e” do inciso VI do art. 30, ambos da Lei estadual nº 15.223/2018, especialmente quanto a (i) aplicação da norma a “toda atividade de pesca exercida no Estado do Rio Grande do Sul, incluindo a faixa marítima da zona costeira”; e (ii) a proibição de pesca mediante utilização de “toda e qualquer rede de arrasto tracionada por embarcações motorizadas, em todo território do Estado do Rio Grande do Sul, incluindo as 12 milhas náuticas da faixa marítima da zona costeira do Estado”.Houve pedido liminar na ação para que fossem suspensos os dispositivos da Lei até o julgamento final da ADI.Inicialmente distribuída ao ministro Celso de Mello, a liminar foi negada em 10/12/2019, sob alguns argumentos, dos quais destacam-se: - “Observa-se, desse modo, que o Estado do Rio Grande do Sul, ao estabelecer a “Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável da Pesca” (Lei gaúcha nº 15.223/2018), instituindo a proibição da utilização de rede de arrasto tracionada por embarcações motorizadas, parece ter agido em conformidade com a legislação nacional editada pela União Federal (Lei nº 11.959/2009) …”
- “Tenho para mim, ao menos em juízo compatível com uma análise estritamente delibatória, que os fundamentos que deram suporte a referido julgamento plenário (ADI 861-MC/AP, Rel. originário Min. NÉRI DA SILVEIRA) afastam a plausibilidade jurídica da pretensão de inconstitucionalidade deduzida pela autora da presente ação direta, ainda mais se se considerar que a legislação estadual gaúcha (Lei estadual nº 15.223/2018) – que institui, em âmbito regional, a proibição da pesca de arrasto – parece ajustar-se às diretrizes constantes das normas gerais da Política Nacional instituída pela União Federal em matéria de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca (Lei nº 11.959/2009).”
- “A pretendida suspensão cautelar da lei gaúcha ora impugnada, tendo em vista as premissas invocadas como suporte legitimador da presente decisão, provocaria grave comprometimento da integridade do patrimônio ambiental, pondo em risco a função ecológica da fauna marítima, com possibilidade de séria redução das espécies marinhas, considerado o caráter evidentemente predatório da atividade pesqueira quando nela utilizados métodos e técnicas como o emprego de “toda e qualquer rede de arrasto tracionada por embarcações motorizadas”, em contexto claramente vulnerador das cláusulas inscritas no art. 225, “caput” e respectivo § 1º, incisos V e VII, da Constituição da República.”
- “É importante considerar, sob tal aspecto, os impactos potenciais gerados pela aplicação da Lei gaúcha, especialmente no que se refere à constatação técnica de que a pesca de arrasto, em virtude da utilização de redes de malha fina, de reduzido tamanho, culmina por capturar e devolver às águas um grande número de peixes pequenos, já sem vida, das principais espécies (corvinas, pescados e pescadinhas) …”
Contudo, o ministro Celso de Mello se aposentou do STF e o seu sucessor, ministro Kassio Nunes Marques, assumiu a relatoria da ADI.Após o PL recorrer judicialmente, o ministro Nunes Marques deferiu a liminar, em contraposição ao que havia determinado o ministro Celso de Mello, sob argumentos pautados na competência da União em legislar sobre mar territorial.
Os efeitos da liminar de Nunes Marques
Conforme noticiou a imprensa: “Em visita nesta segunda-feira (21) ao Farol da Ilha da Paz, em São Francisco do Sul, entre os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, o presidente Jair Bolsonaro comemorou com pescadores a liminar do ministro do STF, Kassio Nunes Marques”.
A revista Piauí publicou reportagem que analisa de forma aprofundada a questão, na qual afirmam que “a liminar beneficia grandes embarcações que fazem a pesca industrial de camarão-vermelho, camarão-ferrinho e outras espécies”, bem como que “beneficia também os interesses de Jorge Seif Jr., titular da Secretaria de Aquicultura e Pesca, vinculada ao Ministério da Agricultura. A família de Seif é dona de uma grande frota de embarcações de pesca industrial e atua há décadas no setor em Itajaí, polo pesqueiro catarinense”.
Apesar da medida liminar deferida, em janeiro a SAP/MAPA suspendeu a utilização de toda e qualquer rede de arrasto tracionada por embarcações motorizadas nas 12 milhas náuticas da faixa marítima da zona costeira do Estado do Rio Grande do Sul, até o início da implementação de um plano intitulado “Plano para a Retomada Sustentável da Atividade de Pesca de Arrasto na Costa do Rio Grande do Sul”, conforme estabelecido pela PORTARIA SAP/MAPA Nº 9, DE 14 DE JANEIRO DE 2021. Lembrando que essa “fauna acompanhante” geralmente captura e mata diversas espécies de espécies ameaçadas, como os elasmobrânquios (tubarões e raias).
Em abril de 2021, um artigo publicado na Science Letters por pesquisadores brasileiros concluiu que “a decisão do novo ministro levou à incerteza sobre o direito do Estado de legislar sobre esta questão, o que pode ser um enorme retrocesso na restauração ecológica e pesqueira. Exortamos a Suprema Corte a reconhecer formalmente os direitos dos estados do Brasil de legislar em suas águas costeiras.”
Ainda é necessária uma decisão da plenária do STF sobre o assunto, sem data marcada.
Apontamentos acerca da Portaria SAP/MAPA 115/2021
Conforme se verificou, o Plano para a Retomada Sustentável da Atividade de Pesca de Arrasto na Costa do Rio Grande do Sul foi construído e publicado após discussão judicial no STF, com dupla análise da medida liminar: negada pelo ministro Celso de Mello e deferida pelo ministro Kassio Nunes Marques.
Contudo, mesmo com deferimento liminar judicial, há aspectos da norma que merecem destaque. Abaixo, elencaremos aquelas que, ao nosso ver, merecem atenção:
- O próprio título do Plano ressalta uma “sustentabilidade” da pesca de arrasto amplamente discutível e controversa. Como uma atividade considerada predatória pode ser sustentável? Ou a suposta “retomada” que seria “sustentável”? Vale contextualizar ainda que uma pesca de arrasto, segundo a FAO, 2019, é um método de pesca no qual redes “dragam” o fundo oceânico, levando à morte de cerca de 4,2 milhões de toneladas de espécies não-alvo dessas pescarias/por ano, em todo o mundo. É a chamada “fauna-acompanhante” e que, segundo relatório técnico produzido pela Oceana em 2020: “Algumas pescarias dessa modalidade chegam a rejeitar 14 kg de pescado para cada 1 kg desembarcado. Por essa razão, elas são responsáveis por 50% de todos os descartes, ao passo que contribuem com menos de 20% da produção pesqueira no planeta, uma evidência de como a alta eficiência de captura mascara sua baixíssima eficiência ambiental“;
- Na introdução do plano, afirma-se que “a mencionada decisão do governo gaúcho conflitou com legislações nacionais (p.ex.: Lei nº 11.959, de 2009) e com o habitual processo de discussão da gestão do uso dos recursos pesqueiros no Brasil, pois a proibição ocorreu sem uma discussão ampla com os representantes dos usuários dos recursos da região”. Contudo, conforme visto acima no item 1, houve ampla discussão (inclusive com setores pesqueiros tradicionais);
- Afirma-se que “Além disso, a decisão foi considerada inconstitucional devido o Estado ter legislado sobre o mar territorial, que compreende uma faixa de doze milhas marítimas de largura, medidas a partir da linha de baixa-mar do litoral continental e insular, tal como indicada nas cartas náuticas de grande escala, reconhecidas oficialmente no Brasil” Contudo, ainda não houve decisão no Plenário do STF, mas tão somente liminar deferida pelo ministro Kassio Nunes Marques. Em outras palavras, a inconstitucionalidade ainda não foi confirmada. No entanto, reforça-se aqui que anteriormente o ministro Celso de Mello havia indeferido a liminar, justamente pelo caráter ambiental da norma gaúcha, a qual traz maior proteção à pesca e aos ecossistemas marinhos. Inclusive, tal histórico de indeferimento da liminar é omitido ao simplesmente informarem que “após duas análises do Supremo Tribunal Federal – STF, foi concedida liminar suspendendo a eficácia do Parágrafo único do Art. 1º e da alínea “e” do inciso VI do Art. 30 da Lei n. 15.223, de 2018, do Estado do Rio Grande do Sul”;
- Informam que “a elaboração do presente Plano a SAP/MAPA solicitou às instituições”. São estas instituições: a) Conselho Gaúcho de Aquicultura e Pesca Sustentáveis – CONGAPES-RS; b) Federação dos Pescadores e Aquicultores do Rio Grande do Sul – FEPARS; c) Federação dos Pescadores do Estado de Santa Catarina – FEPESC; d) Sindicato dos Armadores e das Indústrias da Pesca de Itajaí e Região – SINDIPI; e) Sindicato da Indústria da Pesca, dos Armadores, da Aquicultura da Grande Florianópolis e Sul Catarinense – SINPESCASUL; f) Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas de Pesca de Santa Catarina – SITRAPESCA; g) Sindicato dos Armadores de Pesca do Estado do Rio de Janeiro – SAPERJ; h) Sindicato dos Armadores de Pesca do Estado de São Paulo- SAPESP; i) Fórum da Lagoa dos Patos; j) Sindicato da Indústria da Pesca no Estado de São Paulo – SIPESP; k) Sindicato dos Pescadores do Estado de Santa Catarina – SINDPESCA; l) Universidade Federal de Rio Grande – FURG; m) Projeto Manejo Sustentável da Fauna Acompanhante na Pesca de Arrasto na América Latina e Caribe – Projeto REBYC-II LAC. Causa estranheza haver instituições de outros estados como São Paulo e Rio de Janeiro como entidades a serem consultadas. Algumas perguntas: qual a posição da FURG sobre o assunto? o MMA, IBAMA e ICMBio participaram dessa construção? Houve a consulta dos pescadores artesanais e armadores de pesca?
Conclusões
O que se verifica é que a formulação do Plano, desde o seu início, já foi sedimentado em base sem fundação, ou seja, em decisões que contradizem entendimentos já tomados no Tribunal, bem como em consultas (ou a falta delas) daqueles que são diretamente afetados pela decisão.
Apesar de ainda não estar sendo operacionalizado por conta da necessidade de cumprimento de requisitos e cronogramas da norma, esse plano vem aprofundar os problemas de gestão pesqueira compartilhada e a correta manutenção da biodiversidade e da economicidade no mar, ao passo que traz um modelo de exploração extremamente predatório e que, a médio e longo prazo, trará efeitos negativos irreversíveis a todos (inclusive aqueles favoráveis ao plano da forma como está), pois os recursos pesqueiros já sofrem extremo colapso, conforme apontamos no relatório Pesca por Inteiro, lançado no início de abril.