Mais uma desregulação no setor de aquicultura: decreto Nº 10.576

Mais uma norma com impacto significativo para desregulação do setor de aquicultura e pesca foi publicada e comemorada pelo governo federal nesta semana. O DECRETO Nº 10.576, DE 14 DE DEZEMBRO DE 2020 dispõe sobre a cessão de uso de espaços físicos em corpos d’água de domínio da União para a prática da aquicultura. A questão era anteriormente regida pelo DECRETO Nº 4.895, DE 25 DE NOVEMBRO DE 2003, que trazia os termos “autorização de uso” e não “cessão de uso”. Em relação ao texto anterior, foram trazidas diversas novidades, apontando no sentido da desregulação da atividade.

Na norma anterior, a autorização abrangia somente “pessoas físicas ou jurídicas que se enquadrem na categoria de aquicultor”. Com o novo decreto, agora as áreas aquícolas de interesse econômico são destinadas a pessoas físicas ou jurídicas que se enquadrem na categoria de aquicultor e que tenham como objetivo a produção comercial de pescado, dentro de uma classificação das áreas aquícolas :


  • de interesse econômico;
  • de interesse social; e
  • de pesquisa ou extensão. 


Incluiu-se na definição de “área aquícola” que esta seria destinada “a projetos de aquicultura, individuais ou coletivos, de interesse econômico, social ou científico”. Foram retiradas as definições de aquicultura, faixas ou áreas de preferência, espécies estabelecidas e outorga preventiva de uso de recursos hídricos. Anteriormente, o pedido era analisado pela Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca, pela Autoridade Marítima, pelo Ibama, pela Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA) e pela Secretaria do Patrimônio da União do Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão. No novo decreto, a Secretaria de Aquicultura e Pesca do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) realizará “sozinha” a análise preliminar do projeto técnico. Em seguida, encaminhará a solicitação de uso  e os demais documentos necessários à Autoridade Marítima, para análise quanto à segurança ao tráfego aquaviário, e à Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União (SPU) do Ministério da Economia, para adoção das medidas necessárias para a entrega da área ao Mapa, que realizará a cessão de uso ao beneficiário. O Ibama, órgão federal responsável pela fiscalização ambiental no país, foi dessa forma excluído do processo de avaliação.

Como critérios de classificação dos empreendimentos, anteriormente se tinham como indicadores:

  • empreendimento viável e sustentável ao longo dos anos;
  • incremento da produção pesqueira;
  • criação de novos empregos; e
  • ações sociais direcionadas a ampliação da oferta de alimentação.


No novo decreto, há apenas dois critérios:

  • oferta à União do valor mínimo global superior ao informado no parecer final de autorização de uso de espaços físicos em corpos d’água de domínio da União para a prática da aquicultura; e
  • maior geração de empregos diretos ao informado no parecer final de autorização de uso de espaços físicos em corpos d’água de domínio da União para a prática da aquicultura.

O novo decreto determina que a outorga a ser emitida pela ANA terá vigência de 35 anos e traz ainda a possibilidade de delegar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a gestão dos parques aquícolas. Também confirma que não haverá mais demarcações de parques.

A ANA já encaminhou à Secretaria de Pesca uma relação dos 73 reservatórios analisados pela agência, apontando a capacidade máxima de toneladas de peixes que cada um poderá produzir e se estão aptos a receber tanques redes com  espécies exóticas, nativas ou ambas, mostra reportagem do Estadão. A matéria destaca também que, para a criação de tilápia no reservatório de Itaipu – ideia bastante propagandeada pelo governo federal –, é necessária ainda a aprovação do parlamento paraguaio, uma vez que a gestão da hidrelétrica é binacional e é proibido por lei a aquicultura de espécies exóticas no local.

Em 13 de agosto de 2020, a publicação da IN n. 19 já havia flexibilizado o processo para a cessão onerosa de áreas de domínio da União para fins de aquicultura, dispensando editais de licitação. Como alertado no nosso boletim daquele mês, ficou aparente a intenção de viabilizar a apropriação privada de corpos d’água. Evidência que se observou quando não é dada prioridade às comunidades tradicionais que já fazem uso das áreas a serem requeridas. Sobre isso, o Ministério Público Federal expediu recomendação para que áreas tradicionalmente utilizadas por pescadores artesanais, bem como de relevante interesse ambiental no arquipélago de Ilhabela (SP) não sejam cedidas para criação comercial de peixes e mariscos. Segundo o MPF, o processo de “licitações” iniciado com a publicação da IN foi feito sem nenhuma consulta ou diálogo com as comunidades caiçaras sobre os impactos que tal cessão pode gerar ao seu modo de vida tradicional, nem com a Fundação Florestal – órgão ambiental responsável pela região, no caso de São Paulo. É possível que essa norma leve a casos de judicialização.

Vale alertar ainda que a introdução de espécies exóticas é considerada um dos maiores vetores de perda de biodiversidade global, regional e local. E o Brasil é considerado o país mais diverso do mundo, justamente pela enorme quantidade de espécies de água doce, fato relacionado à grande diversidade e tamanho de suas bacias hidrográficas. Abrigamos mais de 3.000 espécies de água doce, sendo uma parcela considerável endêmica, ou seja, que só ocorrem aqui. Com a possibilidade de cultivo indiscriminado de espécies exóticas no país, sem o acompanhamento dos órgãos ambientais, em quantos anos perderemos essa colocação mundial?

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