O Adaptation Gap Report 2025, lançado nesta quarta-feira (29) pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) escancara uma tendência perigosa: o mundo está reduzindo investimentos justamente quando os impactos climáticos mais exigem resposta.
A lacuna entre necessidades e recursos já chega a centenas de bilhões de dólares por ano e não será fechada sem uma resposta política coordenada. O PNUMA é claro: o Roteiro de Baku a Belém (B2B), a ser apresentado pelas Presidências da COP29 e COP30 em breve, precisa marcar uma virada, com mais ambição, mais solidariedade e menos dívida.
A COP30 em Belém deve ser o momento de afirmar que financiar a adaptação não é caridade, e sim proteção global. “O sinal vermelho já está aceso. O financiamento para adaptação caiu em 2023, antes mesmo de qualquer mudança política nos Estados Unidos; um recuo que mostra que a cooperação climática está perdendo fôlego. O que vem pela frente deve preocupar o mundo inteiro. Belém precisa ser o momento em que os países dêem um sinal coletivo de que o dinheiro vai voltar a fluir e também crescer, ou ficaremos com o tanque vazio justamente quando os impactos climáticos estão aumentando”, explica Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa.
DESTAQUES DO RELATÓRIO
1. Doações de países desenvolvidos em declínio
- Houve uma queda no financiamento disponibilizado para adaptação de 2022 para 2023, que passou de 28 para 26 bilhões de dólares. Mesmo antes da mudança política nos Estados Unidos, já havia um recuo na cooperação internacional para adaptação.
- Esses 26 bilhões de dólares em 2023 ficaram ainda mais distantes da meta de duplicação de recursos estabelecida em Glasgow, na COP26, e que equivale a chegar a 40 bilhões de dólares em 2025. Considerando que o prazo para cumprimento de tal meta de duplicação vence neste ano, o PNUMA afirma que ela será perdida.
O PNUMA é categórico ao afirmar que é preciso que os países reunidos na COP30 atuem para conter o crescimento da lacuna de financiamento.
2. Lacuna futura
- O relatório estima que os países em desenvolvimento precisarão investir cerca de 310 a 365 bilhões de dólares por ano até 2035. Dado que os fluxos atuais (2023) somam 26 bilhões de dólares, há uma lacuna anual de financiamento de cerca de 284 a 339 bilhões de dólares apenas para adaptação.
- O Novo Objetivo Global Quantificado de Financiamento (NCQG) negociado em Baku (300 bilhões de dólares até 2035) cobre todas as ações climáticas, ou seja, tanto mitigação quanto adaptação e perdas e danos. Por isso, não será suficiente para cobrir as necessidades de adaptação sozinha, muito menos o conjunto completo das ações climáticas globais.
- A contribuição potencial do setor privado é estimada em cerca de 50 bilhões anuais até 2035, o que equivaleria a 15% a 20% das necessidades de financiamento mais urgentes até 2035. Atualmente, os investimentos privados em adaptação giram em torno de 5 bilhões de dólares por ano. Ou seja, é esperado o envolvimento do setor privado, porém de forma bastante limitada, dada a natureza dos investimentos em adaptação.
3. Qualidade do financiamento e a armadilha do endividamento
- Em termos de qualidade do financiamento, cerca de 70% do financiamento atual é concessional, isto é, a taxas de juros abaixo do mercado.
- Ainda assim, um dos pontos preocupantes é que o financiamento por meio de empréstimos não concessionais, ou seja, a juros de mercado, ultrapassou o volume de empréstimos concessionais para adaptação em 2023.
- Esse aumento foi mais expressivo em países de renda média, como o Brasil.
- Isso indica uma possível “armadilha da adaptação endividada”, que pode tornar sobretudo os países mais vulneráveis mais dependentes de endividamento para lidar com suas necessidades de adaptação.
- O relatório chama isso de lacuna de custeio, ou seja, quem efetivamente assume o ônus de financiar a adaptação. Essa lacuna é vista como crucial nas negociações, já que ampliar empréstimos onerosos, tarifas ou instrumentos de mercado pode transferir custos para países vulneráveis, aumentando sua dívida e contrariando o princípio de justiça climática e de responsabilidades comuns porém diferenciadas da própria Convenção do Clima.
- O PNUMA destaca ainda que o Roteiro de Baku a Belém, a ser apresentado pelas presidências da COP29 e COP30, precisa enfatizar instrumentos concessionais e não geradores de dívida, “para evitar o aumento da vulnerabilidade e do endividamento dos países em desenvolvimento”.
4. Adaptação e mitigação andam juntas
- O documento explica que não basta mobilizar mais recursos se os impactos climáticos continuarem crescendo. Por isso, recomenda reduzir investimentos em combustíveis fósseis e eliminar subsídios ineficientes, em linha com o chamado do global stocktake (GST, na sigla em inglês) para transição energética.
- O relatório destaca que bancos centrais, bancos comerciais, agências de crédito e de classificação de risco precisam integrar o risco físico do clima em suas decisões de crédito e investimento, para fortalecer a resiliência do sistema financeiro.
5. Planejamento avança, mas de forma desigual
- Atualmente, 172 países (87%) já possuem planos nacionais de adaptação. Isso demonstra um avanço importante, mas 36 deles não atualizam seus planos há mais de 10 anos, o que compromete sua efetividade frente aos novos riscos climáticos.
- Entre os grupos de países, o cenário é desigual (veja o gráfico abaixo).
- Além disso, mesmo com mais países incluindo metas e projetos de gênero nos planos nacionais de adaptação e NDCs, menos da metade adota uma abordagem realmente integrativa e, na média, só 2,3% do financiamento para adaptação é dedicado a ações ligadas à inclusão social e de gênero. A maioria segue tratando o tema de forma específica ou apenas pontual.
6. Implementação avança
- Os relatórios bienais de transparência (BTRs) mostram mais de 1.600 ações de adaptação em curso.
- Biodiversidade e ecossistemas são o foco de 23% das ações de adaptação, seguidos por alimentação e agricultura, água e saneamento, e infraestrutura (14% a 18% cada). Saúde, pobreza e meios de subsistência aparecem menos e o patrimônio cultural quase não é citado.
- Apenas 12% dessas ações apresentam resultados mensuráveis; faltam indicadores e sistemas de monitoramento robustos.
Tanto o relatório quanto o NAPs Synthesis Report sobrevoam a mesma questão: ainda falta estrutura e pessoal nas instituições dos países em desenvolvimento para fazer a adaptação funcionar de verdade. A falta de recursos humanos, instituições fragmentadas e mandatos legais não claros atrasam ações efetivas.
CONCLUSÃO
O Adaptation Gap Report traz a realidade que muitos ainda insistem em não ver: o crescimento da lacuna entre necessidades e recursos financeiros. Embora ainda estejamos vendo mais ação e mais vontade política para adaptar, o dinheiro continua parado. “É por isso que precisamos de sinais claros para triplicar o financiamento e para que os países desenvolvidos renovem suas metas e compromissos,” enfatiza Natalie Unterstell.
Os dados do documento reforçam que é essencial colocar a adaptação no centro político das decisões, adotando o conjunto de indicadores do Objetivo Global de Adaptação e um novo objetivo de financiamento que triplique os recursos disponíveis, garantindo previsibilidade e acesso para os países mais vulneráveis. Sem isso, as promessas de resiliência continuam vazias. “O relatório mostra que não basta falar em mais financiamento: é preciso discutir quem realmente paga por ele. Expandir empréstimos e instrumentos de mercado pode parecer progresso, mas na prática transfere o custo da crise para os mais pobres. Justiça climática significa evitar que os vulneráveis se endividam para se proteger de uma crise que não criaram,” complementa Rayandra Araújo, especialista em Política Climática do Instituto Talanoa.