Lula na Assembleia Geral da ONU: multilateralismo quente, clima morno

(O conteúdo que você vai ler a seguir é feito totalmente por humanos, e para humanos)

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva discursou nesta terça-feira (23), durante a 80ª Assembleia-Geral das Nações Unidas (UNGA, na sigla em inglês). Como manda a tradição, o presidente brasileiro foi o primeiro Chefe de Estado a se pronunciar, logo após o Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, e a Presidente da Assembleia-Geral neste ano, a alemã Annalena Baerbock. 

Em meio às divergências tarifárias com os Estados Unidos e ao contexto geopolítico marcado por guerras, o Chefe de Estado iniciou destacando a determinação das instituições brasileiras em defender a soberania nacional e a democracia diante de ataques internos e externos. Em seguida, como tema comum aos planos doméstico e internacional, centrou ênfase ao combate à fome e às desigualdades sociais. Ao finalmente emitir mensagem estrita “para fora”, a estrela de seu discurso foi a refundação do multilateralismo global, o que por vezes lhe rendeu aplausos da plateia reunida na sede da ONU em Nova York, em momentos durante seus 18 minutos de fala.

“O multilateralismo está diante de nova encruzilhada. A autoridade desta Organização está em xeque. Assistimos à consolidação de uma desordem internacional marcada por seguidas concessões à política do poder. Atentados à soberania, sanções arbitrárias e intervenções unilaterais estão se tornando a regra. Existe um evidente paralelo entre a crise do multilateralismo e o enfraquecimento da democracia, afirmou.

O presidente do Brasil disse que o país “optou por resistir e defender sua democracia, reconquistada há 40 anos por seu povo” e que “a agressão contra a independência do Poder Judiciário é inaceitável”. E foi firme ao dizer que “a democracia e a soberania brasileiras são inegociáveis”. Assim como em 2024, seu discurso tornou a bater na tecla dos gastos exorbitantes em guerras e, especialmente, na situação humanitária em Gaza, demonstrando inconformismo com a obstrução da participação da liderança palestina na UNGA.

O Clima entrou na agenda, mas não foi central 

País-sede da COP30, que será realizada na Amazônia brasileira em menos de 50 dias, o Brasil aproveitou a oportunidade para cobrar a entrega das NDCs como sinal de compromisso dos países com a emergência climática. “A COP30, em Belém, será a ‘COP da Verdade’. Será o momento em que os líderes mundiais devem provar a seriedade de seus compromissos com o planeta. Sem termos o quadro completo das NDCs [Contribuições Nacionalmente Determinadas, “coração” do Acordo de Paris], caminharemos de olhos vendados para o abismo”, alertou. 

Lula buscou conectar a defesa do multilateralismo à promoção da paz e aos acordos pelo Clima, ao dizer que “bombas e armas nucleares não vão nos proteger da crise climática”. De maneira acertada e repetindo o tom de 2024, afirmou que o dinheiro precisa ser redirecionado. “A comunidade internacional precisa rever suas prioridades; rever gastos com guerras e aumentar ajuda ao desenvolvimento”. Recentemente, uma análise da Política por Inteiro relembrou que cerca de 6,6 trilhões de dólares foram consumidos em guerras pelo mundo somente em 2024, um volume cinco vezes maior do que os países também buscam para se adaptarem aos efeitos já inevitáveis da mudança do clima.

Além disso, o Fundo de Florestas Tropicais para Sempre (TFFF), em fase de concepção da qual o Brasil participa ativamente, será um “passo importante para remunerar os países que mantêm suas florestas em pé”.

Justiça Climática: “A voz do Sul Global deve ser ouvida”

Ao se orgulhar da queda de desmatamento na Amazônia brasileira, Lula também afirmou que erradicar o desmatamento requer “garantir condições dignas de vida para seus milhões de habitantes” e destacou as desigualdades sociais que se somam aos desafios climáticos no Brasil e no mundo, reforçando uma mensagem que vem sendo repetida desde pelo menos a cúpula de Copenhagen, em 2009. “Nações em desenvolvimento enfrentam a mudança do clima enquanto lutam contra outros desafios. Enquanto isso, países ricos usufruem de padrão de vida obtido às custas de duzentos anos de emissões.” Com esse argumento, defendeu que “exigir maior ambição e maior acesso a recursos e tecnologias não é uma questão de caridade, mas de justiça”.

Reforma na Governança Climática global

Lula também enalteceu o trabalho da ONU e da Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima. “O mundo deve muito ao regime”. No entanto, não deixou de ser propositivo, ao pedir o nascimento de um Conselho de Clima capaz de, com “força e legitimidade”, trazer “o combate da mudança do clima para o coração da ONU” para, segundo ele, “monitorar compromissos e dar coerência à ação climática”. Nessa altura, comparou o Conselho de Clima proposto ao Conselho de Segurança da ONU, no qual há muito ele próprio tem pedido o aumento do número de assentos e uma paridade entre Norte e Sul globais. A esta altura, lembrava à plateia sobre a urgência de os países que integram a Convenção do Clima saltarem da “fase de negociação” para a “fase de implementação”. E entende que a COP30 deve ser esse momento, divisor de águas na ordem global.

Ausências: transição energética e adaptação ficaram para depois

A Adaptação Climática, que ontem (22), também em Nova York, foi declarada prioridade da COP30 nas palavras da Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, hoje sequer foi mencionada por Lula. Nem como agenda importante para COP30, nem mesmo como uma prioridade política em sentido geral. Financiamento climático, indicadores, planos nacionais, justiça climática… Nenhum dos termos que orbitam em torno do assunto Adaptação foram enfatizados no discurso. Na ótica do time da Política por Inteiro, trata-se de um descompasso (quando comparado com os discursos proferidos pela Presidência da COP e por ministros de Estado) que sugere que o tema Adaptação pode estar ainda “nichado” em torno da área ambiental do governo, sem o adequado grau de transversalidade a ponto de ser “tema obrigatório” em uma das oportunidades mais relevantes do ano para o Brasil, em matéria de política internacional. 

Ao afirmar que é chegado o momento de passar da “fase de negociação” para a “de implementação”, Lula reforça a urgência da ação climática. Mas falar em implementação exige ainda discutir sobre os meios para que essa implementação se concretize: na prática, o fortalecimento de capacidades e um financiamento robusto e em condições razoáveis são questões centrais que ainda têm quilômetros a percorrer daqui até a COP30. E no ambiente de… negociações. No fim das contas, a “COP da implementação” marcará o início da Adaptação como prioridade? Ou Mitigação seguirá tomando o espaço na agenda global? 

Outro elemento que não pôde passar sem ser notado foi o silêncio brasileiro sobre a transição para longe dos fósseis (TAFF). Lula não fez menção ao tema que deveria ser uma das grandes entregas da “COP da implementação”. E quando falou em transição energética, focou tão somente nas necessárias salvaguardas sociais no aproveitamento dos minerais críticos. “A corrida por minerais críticos, essenciais para a transição energética, não pode reproduzir a lógica predatória que marcou os últimos séculos”. Ele também foi silente sobre energias limpas e, se nomeou a crise climática, optou por esquecer sua maior causa: o uso irrestrito e crescente de combustíveis fósseis para gerar energia. 

Ao passo em que elogiou o regime climático e convocou à pacificação do mundo, as falas presidenciais esqueceram de abordar um fator crítico da instabilidade atual: a dependência de combustíveis fósseis e os riscos econômicos, ambientais, sociais, geopolíticos e militares associados. Reconhecendo que a crise climática está presente e centralizando os direitos humanos na questão, Lula escolheu não mencionar que os Estados têm a obrigação legal de prevenir danos climáticos, incluindo ações relacionadas aos combustíveis fósseis. Especificamente, regulando a redução da exploração, da produção e do consumo, de acordo com o parecer consultivo da Corte Internacional de Justiça.

No fim das contas, em termos de ordem mundial, geopolítica Norte-Sul e do esforço para a manutenção do prédio do multilateralismo global de pé, Lula proferiu um discurso razoavelmente bom, prudente e assertivo. Por outro lado, quando o assunto é política climática – prioridade de igual tamanho, e fundamental para a sobrevivência do próprio multilateralismo que defende – seu discurso foi morno, sem grandes surpresas e quase sem grandes “novos gols” em relação ao mesmo momento, em 2024.

Análise (climática) do discurso

Como de costume ao longo dos últimos anos, a Política por Inteiro apresentou sua análise, com lupa climática, do pronunciamento de Lula na UNGA 2025. Nesta metodologia, os aspectos avaliados são atualizados constantemente, contemplando de forma dinâmica a evolução das agendas políticas e do aumento da urgência de implementação. Neste ano foram avaliados 33 itens, seguindo esta pontuação:
– Bom: 2 pontos
– Razoável: 1 ponto
– Neutro: 0 ponto
– Ruim: -1 ponto
– Péssimo: -2 pontos
– Sem menção: 0 ponto

Assim, a pontuação poderia variar de -66 a 66 pontos. Para darmos uma nota de 0 a 10, posicionamos os 22 pontos nessa escala, o que equivaleria a a 6,6 pontos.

O discurso de Lula, na íntegra, foi publicado pela Agência Brasil.

BOM claro, ambicioso e condizente com ações em curso
RAZOÁVEL mencionado, com evidência de confiabilidade
NEUTRO mencionado, sem danos
RUIM mencionado, com danos
PÉSSIMO ausente ou mal tratado
SEM MENÇÃO não mencionado em seu discurso
Comentários
Dá relevância política à agenda de adaptação
SEM MENÇÃO Foi silente quanto ao termo adaptação, ou outros (como resiliência) que remetam ao assunto.
Dá sinais para incentivar entregas relevantes na agenda de Adaptação na COP30
SEM MENÇÃO Foi silente quanto ao termo adaptação, ou outros (como resiliência) que remetam ao assunto.
Enfatiza a importância de financiamento específico para Adaptação, no mesmo patamar que recursos financeiros voltados para Mitigação
SEM MENÇÃO Foi silente quanto ao termo adaptação, ou outros (como resiliência) que remetam ao assunto.
Apresenta metas e compromissos de adaptação e construção de resiliência
SEM MENÇÃO Foi silente quanto ao termo adaptação, ou outros (como resiliência) que remetam ao assunto.
Compromete-se a considerar os riscos climáticos em todos os planos e investimentos/gastos públicos
SEM MENÇÃO Foi silente quanto ao termo adaptação, ou outros (como resiliência) que remetam ao assunto.
Compromete-se com a implementação de uma adaptação climática antirracista e sensível a gênero
SEM MENÇÃO Foi silente quanto ao termo adaptação, ou outros (como resiliência) que remetam ao assunto.
Comentários
Reforça compromissos setoriais relevantes
NEUTRO
Reforça compromisso com o desmatamento zero
RAZOÁVEL Diz que BRA reduziu desmatamento à metade na Amazônia nos últ. 2 anos, mas deu a entender que erradicá-lo está condicionado a ajudas internacionais. Assim como em 2024, não cita os demais biomas.
Compromete-se em contribuir para operacionalizar o Art. 6º do Acordo de Paris e integração de mercados de carbono pelo mundo
SEM MENÇÃO Silente
Apresenta ações para zerar emissões líquidas até 2050
SEM MENÇÃO Quase silente, não fosse por apresentar o TFFF, que fortaleceria o combate ao principal setor de emissões brasileiras.
Considera avaliar a antecipação do net-zero para 2040
SEM MENÇÃO Silente
 Comentários
Correlaciona a intensidade e a frequência de eventos extremos às mudanças climáticas e suas causas (combustíveis fósseis)
 
RAZOÁVEL 
Reconhece a necessidade de ações imediatas, novas estruturas de governança e recursos para lidar com a mudança do clima
 
BOM 
Comentários
Apresenta ações concretas para a transição energética
SEM MENÇÃO
Posiciona-se sobre phase-out de petróleo, carvão e gás (ex.: menciona cronograma para declínio da exploração)
SEM MENÇÃO
Compromete-se a evitar a abertura de novas frentes de exploração
SEM MENÇÃO
 Comentários
Indica que Adaptação e Perdas & Danos serão temas contemplados com a mesma relevância de Mitigação
 
SEM MENÇÃONão cita nenhum dos termos. No máximo, Perdas & Danos estaria implícito quando afirmou que “países ricos usufruem de padrões de vida obtidos em cima de 200 anos de emissões”. É pouco.
Reconhece a necessidade de evitar tipping points – colapsos sistêmicos
 
NEUTRO 
Considera o senso de urgência recomendado por Relatórios do IPCC
 
BOMPresente quando fala que é hora de sair da “fase de negociação” para a “fase de implementação”, sugerindo que a COP30 seja esse marco.
Sinaliza compromisso para a apresentação de uma estratégia de longo prazo (LTS)
 
SEM MENÇÃO 
Comentários
Destaca a importância da Amazônia e dos povos da floresta para o equilíbrio climático global
RAZOÁVEL Até cita a região no discurso e fala sobre.
Reconhece que o desmatamento ameaça não apenas a Amazônia
RAZOÁVEL
Reconhece que o desmatamento ameaça não apenas a Amazônia
BOM
 Comentários
Apresenta compromisso com transição para agricultura de baixo carbono (ex.: Compromisso Global Metano Zero)
 
SEM MENÇÃO 
 Comentários
Compromete-se a respeitar os direitos das populações vulnerabilizadas
 
BOMDestacou a importância de se ouvir os indígenas para a proteção das florestas e buscar soluções baseadas na natureza: “Não é mais admissível pensar em soluções para as florestas tropicais sem ouvir os povos indígenas, comunidades tradicionais e todos aqueles que vivem nelas”.
Compromete-se em garantir participação popular, diálogo e transparência
 
BOMNo trecho destacado no item anterior, contempleta a importância de ouvir povos indígenas e comunidades tradicionais. E defendeu a democracia, com participação e diálogo: “Brasileiras e brasileiros continuarão a derrotar os que tentam solapar as instituições e colocá-las a serviço de interesses reacionários. A democracia precisa responder às legítimas aspirações dos que não aceitam mais a fome, a desigualdade, o desemprego e a violência”.
 Comentários
Cobra por aumento dos fluxos globais para financiamento climático
 
BOMExige que o Sul tenha mais acesso a recursos financeiros e tecnológicos, frisando que isso não é caridade, mas justiça.
Prega o redesenho da arquitetura financeira global para desincentivar investimentos em atividades carbono-intensivas
 
BOM 

 

 

 Comentários
Declara a necessidade de cumprimento de acordos já existentes
 
BOMCritica frontalmente a ausência de compromissos financeiros e de transferência de tecnologias do Norte para o Sul.
Propõe novos acordos e mecanismos de cooperação
 
BOMPropõe mecanismos como o Conselho de Clima da ONU e o Fundo de Florestas Tropicais para Sempre.
Defende mecanismos comerciais para coibir danos ambientais
 
SEM MENÇÃOSeu silêncio reproduz a visão do BRICS, que associa mecanismos comerciais a “protecionismo disfarçado”.
Conclama outros países a entregarem Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) ambiciosas e a seguirem comprometidos com a Missão 1,5°C
 
BOMDiz que sem quadro completo das NDCs, o mundo caminha “de olhos vendados” para um verdadeiro abismo.
Reconhece o valor da decisão da Corte Internacional de Justiça (CIJ) sobre a emergência climática e a responsabilidade de nações pela inação ou ação deletéria ao clima
 
NEUTRONão fala especificamente sobre a recente decisão, mas é razoável ao propor Conselho para monitorar ação climática dos países.
SOMA
9
BOM
4
RAZOÁVEL
2
NEUTRO
0
RUIM
0
PÉSSIMO
16
SEM MENÇÃO
RESULTADO = 22

Equipe Editorial (Liuca Yonaha, Marta Salomon, Melissa Aragão, Ester Athanásio, Marco Vergotti, Renato Tanigawa, Taciana Stec, Wendell Andrade, Daniel Porcel, Caio Victor Vieira, Beatriz Calmon, Rayandra Araújo e Daniela Swiatek).

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