Energia e resiliência

Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Outro dia falávamos aqui, na Política por Inteiro, que o grande desafio das cidades brasileiras, na nova realidade climática, é dar conta de uma infraestrutura que, apesar de essencial, passa muitas vezes despercebida: a da Natureza.

O Brasil tem falado cada vez mais sobre adaptação climática. Mas talvez seja preciso dizer que ela não é feita somente de vultosos investimentos em uma reengenharia da cidade que coloque o risco climático na conta, recomendação que sempre se destaca no tema. Por mais paradoxal que possa parecer, ir além às vezes significa lembrar sobre o que está bem diante dos olhos: é preciso cuidar da infraestrutura natural que já está ali.

Uma observação empírica Brasil afora revelaria que, em geral, há um “comportamento de inércia” da gestão pública em relação às áreas verdes. O que a cidade de São Paulo viveu (e ainda vive) nesta última semana ilustra muito bem esta constatação. Uma vez plantadas, sabe-se lá com qual critério, as árvores crescem do jeito que querem. Se não há planejamento para a escolha de espécies adequadas a cada região e objetivo (por exemplo, insistir em árvores com raízes agressivas nas calçadas, que crescem e quebram calçamentos e tubulações), tampouco há acompanhamento para poda correta e substituição de exemplares doentes. Elas ficam lá, soltas no mundo, como se não fossem um elemento essencial da paisagem e, até bem poucos meses atrás, no pós-enchente gaúcha, a protagonista de um termo que virou coqueluche no debate público: cidades-esponja.

A solução não é culpar as árvores, a chuva, ou o vento. Afinal, em um cenário com menos árvores, menos esponja. E pode apostar: mais enchentes. 

A solução para problemas complexos, é claro, nunca é simples a ponto de caber numa frase, num orçamento, ou num ano só. Envolve desde a mudança de postura de agentes de Estado, que têm a responsabilidade de zelar pela coisa pública, até o planejamento de concessionárias de serviços públicos – que, aliás, também fazem parte do conceito moderno de Administração Pública – passando, é claro, pela colaboração de cada cidadão. Se toda essa engrenagem girar, é esperado que ganhemos em senso de coletividade, o que nos prepararia minimamente para amortecer todo o catatau de efeitos dos eventos extremos que não irão parar de chegar.

No caso de São Paulo, o segundo apagão extenso em menos de 12 meses certamente seria minimizado caso a gestão pública (no mais largo sentido) tivesse sido prudente em zelar pela boa gestão do espaço urbano, pela fiscalização dos contratos de concessão e, claro, pelo melhor emprego do investimento público. Não deixa de ser intrigante pensar em como uma cidade tão rica e economicamente central para o país, como São Paulo, não debata seriamente projetos de adaptação climática, a começar, por exemplo, pelo cabeamento elétrico subterrâneo. Sobre isso, a bem da verdade, não parece ter faltado tentativas, já que o tema chegou a ser objeto de uma norma municipal, em seguida suspensa pelo Judiciário, em 2015.

E não é um bicho estranho, tá? A própria cidade já tem fios por debaixo da terra e que vão muito bem, vide Avenida Paulista. “Aaah, mas é muito caro!“, sempre tem alguém disposto a dizer. Bem, barato e caro são conceitos que sempre guardam uma boa carga de subjetividade, mas o que os dados e a Ciência podem dizer com alto grau de certeza é que não agir para preparar nossas cidades agora sairá muito mais caro para todos nós nos próximos anos. Hoje, os investimentos ditos “caros” teriam garantido o funcionamento de milhares de negócios locais, milhões de pessoas levando suas rotinas em relativa ordem e até respiradores funcionando para pessoas seguirem vivendo.

Em matéria de clima, adaptação é inegociável. Os transtornos de hoje serão ainda maiores amanhã, e quem mais seguirá perdendo com eventos climáticos extremos é quem hoje menos tem repertório perante o caos. Basta estar atento para ver que os milhares de exemplos de negócios locais que não conseguirão se reerguer após tamanho estrago nesta semana, na maior cidade do país, certamente não vêm do Jardim Europa ou de Pinheiros. Dados que revelam a diferença de prioridade dada pela concessionária de energia entre os bairros centrais e os da periferia ilustram perfeitamente o conceito de justiça climática, e sobre quem mais perde quando o caos se instala.

Já faz tempo que cientistas traduzem os dados que dizem: os eventos extremos, como o que São Paulo sofreu, ficarão mais frequentes e intensos. Como daremos conta de versões “vitaminadas” de desastres, se continuarmos a encará-los com a mesma mentalidade que nos trouxe até aqui?

Para um Brasil onde em muitos lugares a remoção de vegetação nativa ainda é chamada de limpeza de área – ecoando uma semântica sabotadora num futuro que já chegou – é sinal de que o caminho da transformação ecológica ainda guarda seus quilômetros a percorrer.

O tempo está rolando.

TÁ LÁ NO GRÁFICO

O Tá Lá no Gráfico desta semana explica as diferenças entre expressões bastante frequentes quando o assunto é clima: net zero e neutralidade climática. As duas estratégias miram um saldo zero de emissões, porém, a primeira foca ações para reduzir emissões brutas e remover as residuais, enquanto a segunda busca um saldo líquido zero por meio de compensações. Ou seja, perseguir o net zero induz um processo de transformação; já a neutralidade não estimula necessariamente a descarbonização das atividades e a redução da dependência dos combustíveis fósseis.

FRASE DA SEMANA

Estiagem castiga abastecimento de água em Manaquiri, Amazonas. Foto: Ricardo Stuckert/PR. Reprodução: Agência Brasil.

“Pela primeira vez na história humana, estamos desequilibrando o ciclo global da água. As chuvas, fontes de toda a água doce, não podem mais ser consideradas garantidas.”

Johan Rockström, cientista sueco e diretor do Instituto Potsdam de Pesquisas sobre o Impacto Climático, da Holanda, ao repercutir relatório publicado nesta semana, que aponta alta pressão sobre os sistemas de água doce do mundo, o que poderá ameaçar a produção de alimentos a partir de 2050.

ABC DO CLIMA

Agroecologia: É um ramo da Ciência e, ao mesmo tempo, um conjunto de princípios que compreende a agricultura a partir de uma perspectiva ecológica, socialmente justa, economicamente viável e culturalmente sensível. Inclui práticas de manejo consciente do solo e das culturas, a fim de garantir a continuidade e o bem-viver das futuras gerações, sendo também indutora de maior resiliência aos sistemas alimentares e de preservação dos ecossistemas.

MONITOR DE ATOS PÚBLICOS

O Monitor de Atos Públicos captou 7 atos relevantes para a política climática nesta semana. A classe mais frequente foi Planejamento, com 4 normas. Destaque para a criação do Fórum de Transição Energética na Aviação Civil, do Ministério de Portos e Aeroportos, e para a publicação da terceira fase do Planapo. Já o tema mais recorrente foi Institucional, com 3 atos, incluindo a criação dos comitês do Pacto pela Transformação Ecológica e as resoluções da Conaredd sobre critérios de elegibilidade para REDD+ nos estados da Bahia e de Roraima.

Segurança e soberania alimentar 

Nesta semana, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) instituiu o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, o Planapo, que deverá ser executado entre 2024 a 2027. O Planapo tem como finalidade ser o indutor de ações e programas que promovam a transição agroecológica e a sociobiodiversidade, resultando em segurança e soberania alimentar e nutricional. O Plano também se propõe ser vetor de adaptação e mitigação dos impactos das mudanças climáticas, possibilitando a melhoria da qualidade de vida da população.

Um dos objetivos é implementar o Pronara – Programa Nacional de Redução dos Agrotóxicos, incluindo a publicação de ato normativo definindo a estratégia de substituição dos agrotóxicos altamente perigosos ao meio ambiente e extremamente tóxicos à saúde humana. A inclusão de metas alinhadas ao Pronara foi considerada uma vitória dos movimentos sociais frente ao lobby do agronegócio, que vem se posicionando abertamente contra a agenda de redução e substituição dos agrotóxicos. O Pronara foi formulado em 2014 e até hoje não foi oficializado. O espaço de controle social do Plano é a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica — CNAPO, criada em 2012, extinta em 2019 e recriada em 2023. Já a Câmara Interministerial de Agroecologia e Produção Orgânica — CIAPO é a instância responsável pela articulação das entidades governamentais.

Além da terceira fase do Planapo, foi publicado o Primeiro Plano Nacional de Abastecimento Alimentar – Alimento no Prato, a ser executado entre 2025 e 2028. O Plano está ancorado no conceito de soberania alimentar e tem entre seus objetivos ampliar o crédito rural para incentivar a transição agroecológica e o abastecimento de alimentos básicos, saudáveis e sustentáveis, além de criar fluxos de abastecimento alimentar que façam frente às emergências climáticas e promovam ambientes alimentares adequados e saudáveis. Políticas públicas como essas, aprimoram e alavancam a agenda dos sistemas alimentares, já definida como prioridade para a adaptação climática. O objetivo de alcançar produção, fornecimento e distribuição de alimentos e agricultura resilientes ao clima, bem como aumentar a produção sustentável e regenerativa e acesso equitativo a alimentos e nutrição adequados para todos está vinculado às metas globais de adaptação.

BRASIL

Endurecimento da Lei de Crimes Ambientais vira Projeto de Lei

O Poder Executivo encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei nº. 4000/2024. A proposta define o aumento das penas e muda o regime inicial do cumprimento da pena para os enquadrados em tipos penais em matéria ambiental. 

A novidade é que o Projeto de Lei sistematiza várias propostas de aumento de pena que foram apresentadas por diversos parlamentares no Congresso Nacional e atualiza o texto com o uso de técnicas investigativas mais contemporâneas enquanto prevê enquadramento às organizações criminosas. Ainda que o efeito esperado seja de curto alcance, no sentido a evitar o apetite criminal ao incêndio florestal, somado ao Plano de Manejo Integrado do Fogo, poderá compor a cesta de soluções governamentais que façam cumprir a perda de cobertura florestal do país – ação incontornável para o atingimento dos compromissos climáticos nacionais, bem como da garantia da conservação da biodiversidade e do patrimônio genético. Entretanto, são necessários ajustes para que as mudanças não acabem por penalizar injustamente povos e comunidades tradicionais. 

A tecitura da proposta teve participação direta do Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Ricardo Lewandowski.

Câmara de Conciliação sobre o Marco Temporal segue sem o movimento indígena

Nesta semana, ocorreu nova reunião da comissão especial de conciliação do STF sobre a constitucionalidade da Lei 14.701/2023, promulgada pelo Congresso Nacional. O conturbado processo ganhou novo episódio após a APIB, maior entidade representativa dos povos indígenas brasileiros, abandonar o processo. Os povos indígenas encontram-se, então, representados apenas pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI), por meio de cinco indicações de assentos no espaço. A próxima audiência está prevista para o dia 23 de outubro.

MUNDO

COP-16 vem aí

A Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica – COP 16 da CDB – começa na segunda-feira (21) e vai até o dia 1º de novembro. Neste ano, a COP 16 terá como sede a cidade de Cali, na Colômbia, país com maior biodiversidade por quilômetro quadrado do mundo. Com o lema  “Paz com a natureza”, a CDB deve debruçar-se sobre a implementação do Quadro Global de Biodiversidade Kunming-Montreal, acordo alcançado na última CDB (COP 15), que define metas para interromper e prevenir a perda de biodiversidade global até 2030, bem como de controle do uso de agrotóxicos e garantia da participação de povos indígenas e comunidades tradicionais nas tomadas de decisão sobre biodiversidade. 

A Talanoa estará presente e acompanhando de perto o avanço das negociações, posto que natureza e clima são indissociáveis.

MONITOR DE DESASTRES

O Monitor de Desastres captou 5 atos de reconhecimento de emergência decorrentes de eventos climáticos extremos, que atingiram 14 municípios. Apesar da redução do número de desastres em relação às semanas anteriores, a estiagem e os incêndios florestais seguem sendo registrados, principalmente nas regiões Norte e Nordeste do país.

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Nota explicativa: os dados registrados no Monitor de Desastres referem-se única e exclusivamente às situações de emergência ou calamidade pública reconhecidos oficialmente pela Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil/MDIC nesta semana. Eventualmente, é possível que desastres ocorridos na mesma semana não sejam contabilizados, dado que o reconhecimento do governo federal leva alguns dias para ser publicado.

TALANOA NA MÍDIA

The Guardian A presidente do Instituto Talanoa, Natalie Unterstell, fala sobre desafios e oportunidades para os governos brasileiro e colombiano liderarem uma consistente agenda amazônica de clima e desenvolvimento.
Mongabay Nosso especialista em políticas públicas para a Amazônia, Wendell Andrade, repercute o que o resultado das Eleições municipais pode significar para a política climática na região.
(O texto deste Boletim Semanal é feito totalmente por humanos, e para humanos)

Bom fim de semana,
Equipe POLÍTICA POR INTEIRO

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