O Monitor de Atos Públicos da Política por Inteiro captou um sinal relevante nos últimos dias: têm se tornado frequentes as designações do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) para a atuação da Força Nacional (FNSP) em diferentes localidades do país. Em agosto, uma delas chamou especial atenção: o ministério determinou que a FNSP não afaste o pé – que havia posto desde janeiro – pelo menos até novembro, dos municípios de Guaíra e de Terra Roxa, no Oeste paranaense. Veículos de imprensa locais dão conta de que tensões envolvendo os Avá-Guarani, Guarani-Ñandeva e fazendeiros têm escalado, resultando em risco real à integridade física. O histórico da região não é dos melhores: há poucos anos, Guaíra era a 1ª do ranking de cidades mais violentas do Paraná e chegou a figurar entre as 60 mais violentas do Brasil.
Indígenas falam em retomada das terras por eles originalmente habitadas, das quais boa parte já foi perdida de maneira irreversível, posto que, no passado, a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu – e a formação de lagos incluída nesse processo – mudou para sempre as características do território, o contato com a ancestralidade, e os retirou a possibilidade de usufruto e posse permanente de áreas por eles ocupadas, como determina a Constituição Federal no art. 231.
Para piorar, problemas sociais e desordens comportamentais evidenciadas nos indígenas – que passaram até mesmo a atentar contra suas próprias vidas, conforme detalhou a Agência Pública em 2021, ao arrefecer da pandemia – jamais receberam a atenção na proporção devida pelo Estado brasileiro.
No meio do caos instalado, a Itaipu Binacional tem sinalizado a possibilidade de adquirir terrenos para alocar os indígenas “como forma de reparação histórica”, o que tem sido considerado pela Comissão Nacional de Soluções Fundiárias (CNSF), vinculada ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), uma possibilidade de resolução do conflito.
No entanto, não é tão simples. Atento à compreensão de que a cultura e a ancestralidade indígenas guardam íntima relação com o território – razão pela qual a simples alocação da população poderia resultar em prejuízo à identidade dos Guarani – o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) alerta para a inafastabilidade do direito de participação dos povos indígenas nas decisões que lhes dizem respeito, que de modo livre e esclarecido devem decidir se desejam ou não ocupar os terrenos em negociação pela empresa de energia.
O Marco Temporal no caldeirão dos conflitos
A situação conflituosa no Oeste do Paraná ilustra com precisão os embates sobre a tese do marco temporal, para a qual o Supremo Tribunal Federal (STF) tenta uma questionável conciliação no Brasil. Questionável porque, se o fundamento básico de uma conciliação é que ambos os pólos estejam dispostos a abrir mão de parte de suas pretensões, o que mais os indígenas, que tanto e irreversivelmente já perderam, ainda terão que perder? Por que a decisão judicial já manifesta – de reconhecimento de que a tese do marco temporal é inconstitucional – não se faz suficiente num país que se funda na supremacia de sua própria Constituição?
Mesmo sem ter respostas a esse questionamento, a assim-chamada Comissão Especial de Conciliação sobre a tese do marco temporal, anunciada pelo ministro Gilmar Mendes ainda no primeiro semestre de 2024, finalmente se reuniu pela primeira vez no início de agosto, e terá muito trabalho pela frente, já que sua pauta prevê (i) debater as jurisprudências já existentes em torno de questões indígenas, (ii) discutir os dispositivos da “lei do marco temporal”, gerando bases para a proposição de revisões na norma, e (iii) gerar entendimentos úteis para auxiliar os ministros no julgamento de pelo menos cinco ações judiciais em curso no Supremo (ADC 87, ADI 7.582, ADI 7.583, ADI 7.586 e ADO 86).
Vale lembrar que a tentativa de conciliação surge no contexto do embate entre Judiciário e Legislativo, provocado ainda em 2023, quando o STF julgou inconstitucional a tese do marco temporal. Logo em seguida, em resposta, o Congresso rejeitou os vetos do Executivo que condenavam a tese, e promulgou a Lei 14.701, que aplica o marco ansiado pela bancada ruralista, cuja eficácia desde então tem congestionado o processo de demarcação de terras indígenas no país. Este impasse tem aumentado a temperatura não só no caso dos Guarani, no Paraná, mas também em diferentes etnias no Mato Grosso do Sul, no Mato Grosso, no Pará e no Rio Grande do Sul.
Com representação dos Executivos Federal, estaduais e municipais, Congresso Nacional, PGR, OAB e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) – que à época se posicionou contrariamente à conciliação, e sobre a qual pairam incertezas sobre a continuidade de sua participação – a Comissão definiu o cronograma de reuniões para o 2º semestre de 2024. No entanto, representantes indígenas criticaram a metodologia da audiência, que não garante o direito de tradução para seus idiomas originários, nem concede prazo razoável de consulta às suas bases, para as próximas sessões. Trata-se de uma questão complexa, já que, ao passo em que o tempo dos indígenas precisa ser respeitado, resultados positivos da conciliação são aguardados para evitar que os conflitos em andamento gerem prejuízos irreversíveis, dado que a integridade física das comunidades e de proprietários rurais está sob ameaça.
No caso paranaense há, ainda, uma camada menos pronunciada, mas potencial à inflamação do conflito: a região faz fronteira com o Paraguai e os Avá-Guarani, por serem encontrados em ambos os países, são tidos por parte da população local como paraguaios, e portanto estrangeiros, o que pode elevar o risco de tensões diplomáticas entre os dois países. Em julho, uma fala do governador do Paraná não colaborou para distensionar essa corda.
E o clima com isso?
Em matéria de política climática, é sabido que sem uma governança territorial bem estabelecida no Brasil, o que passa pelo ordenamento fundiário do país, é improvável que qualquer política pública que paute a descarbonização – ou a transformação ecológica, para usar o termo da vez – se torne bem-sucedida a longo prazo. As demandas ruralistas usuais – que tendem ao monocultivo e à produção de commodities e, portanto, ao aumento de emissões e o não-sequestro de carbono – seguirão colidindo com a proteção de serviços ecossistêmicos e o uso racional dos recursos naturais empreendidos por povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais. Atividades como a bioeconomia, o manejo florestal e o turismo ajudam a mitigar causas e a nos adaptar aos efeitos da mudança do clima. Essa colisão de visões de mundo se mostra especialmente grave em biomas que já apresentam alto grau de intervenção humana e degradação, como a região em disputa, situada no domínio Mata Atlântica.
No painel de terras indígenas do Brasil, de curadoria do Instituto Socioambiental (ISA), a terra indígena Tekohá Guasu-Guavira, cerne do conflito paranaense, ainda está na fase 2 (“identificada”), das 8 fases que levam ao reconhecimento oficial da TI. É nítido o atraso do Estado brasileiro, que para além das limitações estruturais de seu Executivo, ainda desperdiça energia com propostas legislativas que afrontam determinações constitucionais no plano interno e colocam em xeque a credibilidade do Brasil na geopolítica climática global.
Segundo a Funai, atualmente há 784 terras indígenas no Brasil. Elas representam aproximadamente 13,8% do território brasileiro, espalhadas em todos os biomas, sobretudo na Amazônia Legal.
A Política por Inteiro acompanha a situação dos conflitos em todo o Brasil, esperando que, invariavelmente, a solução caminhe nas duas frentes que mais importam aos povos originários: a celeridade no processo que leva à homologação (reconhecimento formal) das terras que lhes são de direito e, pari passu, a implementação consistente de Planos de Gestão Ambiental e Territorial em favor dos indígenas, como via rápida para acessar políticas públicas que assegurem dignidade e respeito à sua cultura e a seus modos de vida. Afinal, são direitos fundamentais estabelecidos na Constituição brasileira.