Panorama Amazônico: Parte 1 – Conjuntura política e o que está em jogo

O Brasil de 2023 e o que vem por aí

Nesta primeira parte da série Panorama Amazônico, falamos sobre os temas que estão sob retomada, englobando tópicos considerados antigos e que ressurgiram neste terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva na presidência do país.

O primeiro ano da chamada ‘Frente Ampla’ passou. No campo político, algumas vitórias institucionais, acompanhadas de concessões no estilo vão-se os anéis, ficam os dedos. Se de um lado, foi importante para o Brasil investir tempo e energia para recuperar institucionalidades e ao mesmo tempo incidir numa movimentada agenda internacional, por outro, o ano de 2023 demonstrou que novas vitórias governistas não serão fáceis e seguirão a demandar altos custos, em especial frente ao Parlamento.

Num balanço geral, os 12 meses de 2023 perfazem um ciclo que deixa saldo positivo do ponto de vista das agendas nacionais de clima e desenvolvimento. Entre metades cheias e vazias de diferentes copos, o Brasil parece caminhar para reaproximar-se dos compromissos estabelecidos na Constituição Federal, nos tratados internacionais dos quais é parte (mais que isso: historicamente, um protagonista) e em regulamentações que motivam ações no setor privado, na sociedade e na própria administração pública. O relatório Política Climática por Inteiro trouxe, em detalhes, vários dos avanços contabilizados pelo Brasil durante o ano. Quando tratamos de Amazônia, vários deles merecem destaque, a exemplo do lançamento do novo PPCDAm, do PPCerrado1, da retomada dos instrumentos de financiamento climático em prol da região, cujo expoente é o Fundo Amazônia, entre outros.

Além disso, há boas novidades, como é o caso do Programa União com Municípios, que vem acoplado a uma exitosa política do passado – a lista dos municípios prioritários da Amazônia – agora “turbinada” com financiamento via Fundo Amazônia, e ainda a inclusão da degradação florestal como critério avaliativo de municípios, bem como regras mais firmes para obtenção de crédito. Aliás, esta última em dobradinha com recente Resolução do Conselho Monetário Nacional (CMN).

Em face de (1) uma transição inexistente entre mandatos federais, (2) uma composição de governo altamente heterogênea, que encampa partidos e ministros com visões de mundo que colidem frontalmente com frequência; e (3) da necessidade de propor reformas importantes a um Legislativo de maioria opositora; entre outras dificuldades de percurso, o governo Lula vai dançando num campo minado, com o implacável desafio do tempo transcorrendo e as emissões aumentando a temperatura do planeta, assim como o número de desastres por todo o Brasil.

Como todo ano par no Brasil, em 2024, boa parte da atenção se volta para as Eleições. Ao contrário do que o senso comum possa indicar, elas são especialmente relevantes para Brasília, pois, para muito além do que a escolha de prefeitos e vereadores, os grupos políticos eleitos em 2024 por todo o país ajudarão de maneira decisiva a formar as bases locais de apoio às campanhas para governadores, deputados estaduais, deputados federais, senadores e, é claro, para presidente da República. Essa leitura importa para a análise de política climática, porque para que a Nossa Descarbonização ocorra em velocidade e consistência suficientes para não estourarmos o orçamento de carbono, é necessário que governos locais, estaduais e o parlamento sejam ocupados por perfis que compreendam que a mudança climática é o grande problema da coletividade humana atual, e que ela exige medidas estruturantes, imediatas e corajosas, atributos difíceis de encontrar quando eleitos são reativos às largas evidências científicas (e à escalada do número de desastres) sobre como o mundo está aquecendo.

Em paralelo, todos os níveis de governo no Brasil têm respirado COP30. Gestores públicos e lideranças, em especial amazônicas, moldam discursos e demonstram compromisso em colaborar para “a melhor COP da história”, como vem sendo vendida. Acontece que a linha entre entusiasmo e fraude pode se mostrar tênue. Os discursos progressistas e arrojados não têm combinado com o modo tradicional de fazer política, que ainda persiste. As evidências científicas de que a emergência climática está instaurada ainda não foi suficiente para fazer governos mudarem o curso da história e abandonar os investimentos e subsídios para aumentar a exploração de combustíveis fósseis. O país ainda não tem uma estratégia clara e em marcha de adaptação das cidades a eventos climáticos extremos. Na Amazônia, que nunca foi incluída efetivamente nos planos de desenvolvimento do país – senão para o fornecimento de recursos naturais, energia e via de passagem para o escoamento de parte da produção nacional – a manutenção do modus operandi de governos é ainda mais crítica. Temas como pesquisa e exploração de novos campos de petróleo na região seguem na pauta de prioridades de governantes, como se o mundo não estivesse precisando de uma corrida frenética na direção oposta.

Das cheias nos rios Itacaiúnas e Tocantins, no sudeste do Pará, à histórica seca dos rios Negro, no Amazonas, e Acre, no estado homônimo, passando por dramas humanitários como os vivenciados pelos yanomami em Roraima, os governos estaduais parecem não estar conscientes de que a crise climática se impõe, e demanda decisões alinhadas à ciência e à altura do que o senso de urgência indica a todos.

1 Uma vez que vários trechos da Amazônia Legal têm o cerrado como bioma predominante, como ocorre em MT, MA, TO e regiões do PA.

Dados e Contexto: Amazônia como ‘fiel da balança’ do Brasil

Entre 1990 e 2022, seis dos nove estados amazônicos figuram entre as 12 unidades da federação que mais emitem gás carbônico (CO2 ) (SEEG, 2022), tendo Mato Grosso, Pará e Rondônia entre os cinco primeiros. Se observarmos apenas a história recente, nos últimos cinco anos, quatro estados amazônicos figuraram no Top 5 de emissões brasileiras, com o Amazonas acompanhando os três já citados. Nesse ranking, comparados um a um, esses estados chegam a ultrapassar estados industriais, como São Paulo e Minas Gerais. A causa principal dessas emissões vem sendo recorrentemente alertada: o desmatamento em descontrole; problema complexo e de causas multifatoriais, como a apropriação particular de terras públicas, a extração ilegal de madeira, a pecuária extensiva e até mesmo a atividade minerária, seja ela legalizada ou irregular, cujo expoente máximo são os garimpos.

Nos últimos cinco anos de referência, 46% de todas as emissões nacionais foram provenientes da Amazônia. Em números absolutos, isso representa 1,06 bilhão de toneladas de CO2 equivalente (GtCO2eq), de um total de 2,31 GtCO2eq. Na medida em que o Brasil anunciou em 2023 a correção de sua NDC e se impôs a meta de rebaixar seu teto de emissões para 1,32 GtCO2eq já em 2025, e reduzir esse limite ainda mais, para 1,20 GtCO2eq até 2030, controlar as emissões amazônicas é matematicamente o ‘fiel da balança’ entre sucesso e fracasso da política climática brasileira.

Claro que isso não se faz somente com redução por redução. Mais do que atacar os sintomas, é preciso atacar as causas dessas emissões. O desmatamento (legal ou ilegal) ainda é o ecoar de uma política mal-sucedida de integração nacional, que estimulou gerações a “vencerem” o “inferno verde”, e menos de meio século depois, o Estado brasileiro precisar movimentar grandes quantidades de orçamento público, recursos internacionais, pessoal e energia para estimular um novo modelo de ocupação e desenvolvimento amazônico. Na Amazônia, é preciso repensar as políticas públicas de um canto a outro, incluindo o cuidado às variáveis ambientais e climáticas no centro da gestão pública, dos negócios e da vida em sociedade.

Com exceção do Amapá, todos os oito demais estados da Amazônia Legal apresentam combinação superior a 85% de suas emissões totais considerando os setores de emissão “Mudança no Uso da Terra e Florestas” e “Agropecuária”, dentro dos quais se situam as categorias alteração no uso da terra (principal: desmatamento) e eructação (arroto) de bovinos.

No presente amazônico, há um choque visível entre passado e futuro. De um lado, a proposta de um “novo modelo” de desenvolvimento para a Amazônia, com temas como bioeconomia, restauração, concessões florestais ou de serviços em terras públicas, pagamentos por serviços ambientais e REDD+ figurando nos discursos políticos como ferramentas essenciais. De outro, temas como expansão as usual da malha rodoviária, pesquisa e exploração de novos campos de petróleo e gás e falas de estímulo à ampliação do garimpo (estas, na conta de parlamentares) inclusive em terras indígenas.

Governadores: ambição climática pero no mucho?

Assim como no nível federal se mostra nítido o desafio de concertação entre pastas no Executivo – dadas as diferentes visões de mundo e de desenvolvimento – na Amazônia brasileira não é diferente. Os governadores dos nove estados, de campos ideológicos distintos e variadas matizes, precisam conciliar diferentes correntes dentro de suas administrações, ao mesmo tempo em que terão pouco mais de um ano até a COP30 para demonstrar uma agenda de desenvolvimento climate-and-forests friendly viável e de impacto.

Os governadores amazônicos ganharam espaço e vitrine nos últimos anos. Em parte, este movimento de protagonismo se deve a avanços na institucionalização do diálogo entre estados e na proposição de saídas compartilhadas. Essa forma de funcionamento tem como âncora o Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia Legal (CAL), criado em 2017 e que se coloca como uma instância permanente de enfrentamento de demandas regionais comuns. Fruto de um processo de amadurecimento da Força-Tarefa2 e do Fórum de Governadores da Amazônia Legal, o CAL3, na prática, atua em duas frentes: uma estratégica e outra operacional. Na primeira, é um interlocutor dos estados para dentro e para fora do Brasil. Estados que, em bloco, englobam 59,5% de toda a extensão territorial nacional. A nova conjuntura política instaurada após o início do governo Lula impõe aos estados a tarefa de religar com Brasília para o assunto clima, e isso demanda alta capacidade de articulação para escalagem de resultados, impelindo os governadores a elevar a ambição climática em seus territórios e a demonstrar ao governo brasileiro que, sem eles, se torna inviável o alcance das metas a que o Brasil está comprometido no plano internacional; na segunda, o consórcio trabalha para estruturar ações coordenadas, que vão de fiscalização a compras públicas, passando por prospecção de parcerias público-privadas e internacionais, captação de recursos e regramento de atividades transfronteiriças.

Nos próximos anos, os governadores têm desafios “para fora” e “para dentro”: “para fora” porque será preciso aumentar a incidência política e técnica visando a uma relação interfederativa sólida, que se sustente ao longo do tempo com a União e com os municípios, batendo sempre na tecla de investimentos para a descentralização de gestão como chave para resultados. E, “para dentro”, porque a alternância de poder nos governos estaduais não poderá significar retrocesso nas políticas subnacionais que importam à pauta climática. Assuntos como bioeconomia, restauração, concessão de florestas públicas, fortalecimento do licenciamento ambiental, geração de empregos verdes, implementação de compras públicas sustentáveis e do ecoturismo, entre outros, não são grife. Constituem obrigação básica deste e dos próximos mandatos.

Atualmente, na avaliação de especialistas do Instituto Talanoa, há um risco político que deriva de posicionamentos incongruentes em linguagem climática por parte de governos subnacionais na Amazônia. Essa incongruência se revela no choque percebido entre discursos favoráveis à conservação da floresta, com bons aportes técnicos, revisão de planos estaduais de combate ao desmatamento (PPCDs) e estímulo a ferramentas de incentivo econômico e financeiro, e, por outro lado, de sinais favoráveis a frentes como expansão da exploração de óleo e gás, não-criação, redução ou recategorização de áreas protegidas, execução de grandes obras de infraestrutura à revelia de medidas antecipatórias para contenção de riscos e externalidades, e baixo (ou inexistente) compromisso de governadores e bancadas legislativas quanto à realização de consultas amplas aos segmentos sociais nas áreas de influência dessas intervenções. Isso sem contar a ausência de temas urgentes nos sinais (discursos) e atos (normas), como medidas consistentes de destinação de terras públicas, ou mesmo de programas de adaptação climática, sequer para as maiores manchas de ocupação humana em seus territórios.

Ainda nessa avaliação, embora tenha havido amplas chances de incidência de governadores amazônicos nas tomadas de decisão no governo federal – até mesmo em “colheita” ao protagonismo regional por eles demonstrado entre 2018 e 2022 -, a influência dos governadores na agenda climática brasileira se mostrou estagnada em 2023. E só não retraiu porque o nível de compromisso entre técnicos e secretariado dos estados têm se mantido, impedindo que sobressaiam os sinais reativos ou confusos emitidos por governadores em relação à pauta climática. À medida em que se aproxima a COP30 e as expectativas internacionais aumentam, o risco aos subnacionais se amplia e demonstra que será técnica e politicamente difícil dançar no campo minado entre compromisso climático efetivo e greenwashing governamental.

Compreender os aspectos políticos na Amazônia de hoje – para então entender a quantas está a ambição climática da região – demanda ter claro não se tratar de um bloco homogêneo de lideranças políticas. Ao contrário, há pelo menos três matizes de orientação entre os nove estados. Numa primeira categoria encontram-se Rondônia e Roraima, estados cujos governadores, ideologicamente identificados mais à direita, têm passado longe de depositar na agenda ambiental suas prioridades de governo. Outros, como Acre, Amazonas e Tocantins, de governadores aliados de Bolsonaro entre 2018 e 2022, até dizem encampar prioridades nas pautas de meio ambiente e clima, mas frequentemente emitem sinais controversos. Controvérsias também rondam a fatia de governadores tida como progressista, como os de Pará e Amapá, que nem mesmo o alinhamento ideológico ao atual governo federal e a trajetória política de defesa a políticas ambientais têm sido suficiente para evitar falas públicas que depõem contra a credibilidade de seus compromissos climáticos. O governador do Maranhão, embora com trajetória diferente aos dois anteriores, também pode ser enquadrado nesta última categoria, por aproximação.

Como grande parte dos governadores já está em segundo mandato, os períodos eleitorais em 2024 e 2026 serão decisivos para dizer se o compromisso com a ciência do clima e com boas práticas elevarão as ambições dos governadores amazônicos rumo ao net zero a que eles próprios vêm oficialmente se comprometendo.

2 Força-Tarefa de Governadores para o Clima e Florestas (GCFTF), criada em 2008, por iniciativa de governadores de Brasil, EUA, México e Nigéria, dentre os quais o republicano Arnold Schwarzenegger (Califórnia).
3 Operacionalizado a partir de Câmaras, tem o papel de amplificar entregas, melhorar a relação entre os estados – especialmente nos desafios em áreas fronteiriças – e fortalecer a articulação dos estados com atores nacionais e internacionais, o que tem motivado, por exemplo, a existência de um ambiente próprio nos espaços oficiais das últimas três COP.

O que precisa de retomada?

Áreas protegidas

Dados da plataforma oficial de UCs no Brasil (CNUC) apontam que somente nove Unidades de Conservação (UCs) foram criadas no país em 2023. Destas, apenas duas4 por iniciativa do governo federal; uma por iniciativa de governo estadual (PA); três por governos municipais (em GO, MT e ES) e três pelo setor privado. De todas, apenas três na Amazônia. Estes dados são contundentes em indicar a falta de apetite, nos três níveis federativos, em ampliar o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), considerado por especialistas do Instituto Talanoa uma das políticas ambientais e territoriais brasileiras mais efetivas deste século.

É bem verdade que houve também ampliação5 de UCs já existentes, mas no geral a agenda de áreas protegidas, a despeito de ações específicas na nova fase do PPCDAm, lançada em 2023, ainda não decolou. Analisar o apetite governamental para a criação de Unidades de Conservação é importante para a agenda climática por dois motivos: o primeiro é a política nacional de áreas protegidas ser sabidamente um instrumento eficaz para a contenção das emissões por desmatamento e degradação florestal, dadas as regras especiais de uso desses espaços, a fiscalização pelos órgãos gestores e a participação social na implementação da unidade. O segundo motivo é o potencial de remoção6 de carbono das UCs brasileiras e de indução ao desenvolvimento local sustentável, já que são propícias a receber todos os programas públicos de conservação considerados chave para o desenvolvimento sustentável: restauração florestal, bioeconomia, pagamentos por serviços ambientais, REDD+, manejo e concessão de florestas públicas, sistemas agroflorestais, turismo, entre outros. Se estes temas são inequivocamente essenciais para 10 entre 10 especialistas, por que então os espaços protegidos onde essas políticas podem aterrissar não têm tido o devido destaque nos esforços de governos?

Para 2024, o desafio da implementação de UCs segue implacável, já que a experiência prática de órgãos gestores e uma auditoria do TCU demonstram que, na Amazônia, por exemplo, em que pese esforços como os do ARPA, mais de 50% das UCs estão em níveis abaixo da metade da régua de implementação, que leva em conta critérios como planos de gestão, infraestrutura física, manejo comunitário e uso público adequados, pesquisa científica, sustentabilidade financeira para administração mínima, entre outros. Redução do desmatamento nessas áreas significa menor emissão e maior chance de o Brasil cumprir sua NDC. Importante pontuar o papel dos estados, que merecem cobranças, sobretudo os de Amazônia e Cerrado. Isso porque o protagonismo de governadores desses biomas na agenda ambiental – adquirido nos anos de Bolsonaro – não se converteu em apetite para a criação de novas áreas. Ao contrário, multiplicaram-se processos de redução ou de recategorização das UCs existentes. Vale lembrar que grande parte dos governadores da Amazônia Legal se reelegeu em 2022, ou já integrava o governo anterior, o que significa tempo suficiente para o amadurecimento de uma agenda séria para áreas protegidas. Um filtro do CNUC reforça o ponto: com exceção de uma única UC paraense, simplesmente não há registros de criação de UCs estaduais em toda a Amazônia Legal em 2023. É grave.

O Pará, por exemplo, criou apenas duas UCs em 5 anos do mesmo governo até aqui, o que revela um indicador ruim (1 UC ou 62 mil hectares a cada 2,5 anos, mesmo o Pará tendo pelo menos 7,2 milhões de hectares em terras públicas não-destinadas) para um estado que se apresenta como liderança regional em matéria de clima. É pouco.

Em que pese o Brasil ter retomado a demarcação e a homologação de Terras Indígenas e também ter reconhecido formalmente os Territórios Quilombolas, quando o assunto são as Unidades de Conservação, os processos de criação e ampliação são tímidos. Isso é especialmente importante para a agenda climática porque na Amazônia há grandes porções das chamadas Terras Públicas Não-Destinadas (TPND), áreas inteiras que o Estado brasileiro não decidiu o que fazer, não está presente e até o momento não incentivou ninguém a estar, portanto propícias a ilegalidades, já que não há vinculação que permita a responsabilização por atividades criminosas.

Lista de municípios prioritários de combate ao desmatamento (e dessa vez, à degradação)

Uma das ferramentas que colaborou decisivamente para a redução do desmatamento durante a primeira passagem de Marina Silva pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), em  2007, a chamada lista de municípios prioritários do Bioma Amazônia teve sua mais nova versão lançada em novembro de 2023. Integram a lista 85 municípios, sendo 70 críticos e 15 com desmatamento “sob controle”. Diferente das demais edições da lista, acoplado agora está um novo programa, intitulado União com Municípios pela Redução de Desmatamento e Incêndios Florestais, que consiste em favorecer aportes financeiros estratégicos vindos diretamente do Fundo Amazônia para municípios que formalizarem a adesão à iniciativa, consoante critérios estabelecidos pelo MMA. Um dos muitos desafios desta frente é a “reconquista” de situações já resolvidas no passado, mas que recrudesceram na última década, por uma série de fatores, com a retomada do desmatamento na Amazônia.

Municípios como Paragominas (PA), Dom Eliseu (PA), Marcelândia (MT) e Querência (MT), que um dia alcançaram as condições mínimas para saírem das listas editadas entre 2007 e 2012, atualmente retornaram à lista, na condição de municípios críticos. Será necessário, portanto, “reviver o passado” e controlar o desmatamento e a degradação novamente nestas áreas. Sendo a lista um direcionador de esforços prioritários do Estado brasileiro para a contenção do desmatamento e da degradação florestal, o grande desafio do Brasil até o final de 2026 é retirar da categoria “críticos” todos os atuais 70 municípios atualmente na lista. Isto é, esmagar o problema com tal intensidade a ponto de as municipalidades não atingirem mais os critérios objetivos que as colocam ali, levando-as para a categoria de “monitorado” ou “sob controle”.

A chave dessa transformação passa por múltiplas (e cumulativas) ações nas frentes política, jurídica, técnica e institucional. Na frente política, a consolidação de uma aproximação consistente entre governo federal, estados e municípios, que claramente foi prejudicada na última década, em razão da falta de diálogo e de incentivos interfederativos. Na frente jurídica, atualizações legislativas e superação dos passivos processuais de infrações ambientais, que podem levar à redução do senso de impunidade. Na técnica, investimentos em ampliação do número e da qualidade dos agentes públicos dedicados à agenda ambiental, nos três níveis de governo. As instituições apenas serão fortes a partir do êxito das demais frentes.

Ainda que de 2007 para cá o mecanismo da lista venha sendo aperfeiçoado, os meios para estimular municípios a conterem atividades ilegais ocorrentes em seu território não foram exercitados. O que se viu foi um retrocesso na liga criada entre 2006 e 2012, com capítulo especial após a sanção da Lei Complementar nº. 140, em 2011, que estabelece o compartilhamento constitucional de competências entre os entes federativos. Em que pese o aprimoramento dos chamados embargos remotos, ocorrido graças a saltos significativos de estados e da União acerca do monitoramento do desmatamento, a falta de uma capacidade de resposta, ágil e descentralizada em nível local (estados e, principalmente, municípios), segue aquém do tamanho do desafio. Colabora para isso, também, o fato de a integração de dados entre sistemas estaduais e federais vir encontrando barreiras. A chamada interoperabilidade de sistemas, passo acima após uma integração mínima, é tida como “sonho distante” por técnicos e analistas ambientais entre os diferentes níveis de gestão.

 

Zona Franca de Manaus e a Reforma Tributária

A aprovação da Reforma Tributária (PEC 45/2019) trouxe a continuidade do regime diferenciado de tributação para a Zona Franca de Manaus (ZFM). Com isso, os benefícios de desoneração para produção na ZFM devem agora ser estendidos até o ano de 2073.

Controversa por se tratar de um polo industrial no meio da Amazônia – cuja maior parte dos gêneros ali produzidos não guarda relação com um aproveitamento racional dos recursos naturais amazônicos – a ZFM costuma ser defendida como uma espécie de “barreira” que impediria o aumento do desmatamento no estado do Amazonas, ao gerar cerca de 113.000 empregos diretos e indiretos na região e com isso evitando a pressão de atividades humanas sobre florestas. Hoje, no entanto, com o planeta diante do desafio de reduzir a intensidade de carbono, sabemos que nem tudo é sobre simplesmente “gerar empregos”, argumento meramente desenvolvimentista, que não se preocupa com as externalidades causadas pela atividade industrial, entre elas a produção de efluentes não tratados e resíduos fora de logística reversa, que aumentam as emissões de GEE do Amazonas. O outro questionamento à tese da “barreira ao desmatamento” é a não-distribuição da riqueza gerada pela atividade da ZFM de maneira equilibrada no território estadual. Ao concentrar renda em torno da ZFM, amplia-se a desigualdade econômica e social entre Manaus e os demais municípios, no que a geógrafa brasileira Bertha Becker já classificava como “macrocefalia” amazonense.

A ZFM parece desconectada de um projeto nacional de desenvolvimento industrial. Mesmo agora, com o lançamento do plano Nova Indústria Brasil, a Zona Franca é mencionada apenas de maneira acessória, sem uma clara mensagem sobre uma adequação gradual aos pressupostos de economia Verde ou às seis missões eleitas pela chamada neoindustrialização nacional. Ainda assim, por motivos relacionados à forte dependência econômica, no Amazonas é muito comum que a narrativa de defesa da ZFM esteja atrelada à contenção do desmatamento. Algo como: “se não existisse ZFM, toda essa gente que trabalha na ZFM estaria desmatando”. Trata-se de uma retórica muito questionável, por vários motivos. O primeiro é usar uma possível correlação como um elemento de causalidade, coisas que não se misturam. O segundo é admitir a hipótese de aceitar que algo “ruim” seja “bom”, só porque ele é “menos pior” que algo “péssimo”, raciocínio que não faz sentido em tempos de emergência climática. Aliás, existe um plano de neutralidade de carbono das atividades fabris da ZFM? A Suframa propõe uma trajetória de emissões para as cerca de 510 indústrias instaladas na ZFM?

Estas e outras perguntas devem se colocar no debate amazônico, que não pode ser reduzido à mera contenção do desmatamento. Afinal, se hoje, hipoteticamente, o desmatamento na região fosse zero, ainda assim estados como o Amazonas não teriam emissões líquidas nulas, dado que setores como indústria, energia, resíduos e mobilidade seguem emitindo, sem um plano claro de descarbonização para chamarem de seu.

Essa chave precisa virar e, no caminho até a COP30, os governos federal e estadual precisam reconsiderar velhos elementos de seus discursos e trazer a ciência climática para o centro das políticas públicas. O governador Wilson Lima, por exemplo, carrega há anos em seus discursos o mote de que a pobreza é a maior responsável pelo desmatamento, dando a entender que pobres desmatam por falta de alternativa. É uma lógica que não se sustenta, porque o desmatamento escala em grandes áreas por conta de uma estrutura muito bem financiada, com maquinários e logística, itens com os quais pessoas descapitalizadas não conseguiriam arcar. O governador também costuma falar em desenvolvimento sem trazer questões de mitigação e adaptação climáticas como variáveis determinantes de sua viabilidade.

4 O Parque Nacional (Parna) Serra do Teixeira (PB) e a Floresta Nacional (Flona) de Parima (RR).
5 Como são os casos de Resex Chocoaré-Mato Grosso (PA), Parna do Viruá (RR) e Esec de Maracá (RR), as duas últimas como parte da estratégia de proteção à Terra Indígena Yanomami, em Roraima.
6 Estudo de Unterstell & La Rovere (2021) indica que áreas protegidas podem representar até 423 MtonCO2eq, ou seja, 57% de um total de 747 MtonCO2eq de estimativa-pico até 2030, considerando todas as possíveis classes de remoção.

Pará, um capítulo à parte para a sede da COP30

Escolher a Amazônia para sediar uma COP traz dois signos importantes dentro e fora do Brasil: o primeiro, no plano interno, de que o Governo deseja para o país a revisão de seu modelo de desenvolvimento, tendo como fio condutor dessa vez uma transformação pela ecologia, estimulada pelo alto potencial de seus recursos naturais renováveis e com o respeito às garantias da população amazônica – em especial povos e comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas. O segundo, no plano internacional, passa a mensagem de que, a partir da Amazônia, o país buscará colocar-se em linha com a ambição demandada pelo contexto de emergência climática. Em ambas as leituras, está a oportunidade de colocar a Amazônia como protagonista – em lugar de periférica – do debate global sobre desenvolvimento, algo completamente distinto do que a História tenha demonstrado, até aqui.

O Pará parece ter entendido isso e tem se lançado ao protagonismo no contexto regional, encabeçando importantes debates subnacionais. Dois deles são os da Bioeconomia, lançada em 2022, e da Recuperação de Vegetação Nativa, lançada no ano seguinte. Partes de uma estratégia para descarbonização no setor de AFOLU até 2035, denominada Amazônia Agora, essas políticas apresentam metas arrojadas para um estado que historicamente é o mais pressionado quanto à conservação de sua biodiversidade e florestas, cujos fluxos e estoques são decisivos para o alcance das metas climáticas nacionais.

No final de 2023, o governador Helder Barbalho sancionou a lei que institui o PPA 2024-2027. Embora o lema do plano quadrienal traga o compromisso do estado em ser “ambientalmente sustentável”, o quadro-síntese do plano7 aponta que apenas 1,32% do orçamento no período foi dedicado para ações do programa Gestão Socioambiental e Ordenamento Territorial Sustentável8, que concentra ações da pasta ambiental e fundiária. Na contramão dos fatos de que (1) cerca de 92% das emissões de GEE do PA são provenientes de uso da terra, florestas e agropecuária9; (2) o governo tem politicamente se apresentado como uma liderança nacional em descarbonização e (3) suas metas de política climática se mostram ousadas quando comparadas com o histórico do território, parece no mínimo um contrassenso que o PPA paraense não tenha um programa específico para calçar sua agenda climática. Além disso, o próprio documento demonstra que a densidade do ODS13 (Ação contra a mudança global do clima) ー que deveria ser transversal e abrangente, por natureza ー é tida como baixa10. Ao prometer seu net zero em AFOLU até o final de 2035, era de se esperar que o Pará dispensasse maior atenção à pauta climática em seu principal instrumento de planejamento e gestão.

Também no final de 2023, a ALEPA11 aprovou lei que cria a Política Estadual de Unidades de Conservação (PEUC) e regulamenta o chamado Sistema Estadual (SEUC), que já era lei no Pará desde 1995, sem nunca ter sido regulamentada nesse ínterim. Um dos destaques na lei é a criação de novas tipologias de conservação que não figuram no atual SNUC (2000), mas que colaboram para ampliar os espaços territoriais especialmente protegidos no Brasil e encontram amparo técnico em fóruns internacionais de debate científico, como a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN).

Embora avaliada como um importante sinal no apagar das luzes em 2023 – justamente no estado brasileiro que sediará a COP30, e que vem sendo chamada pelo próprio governo de “A COP da Floresta” – Rios de Proteção Especial (RPEs): a mineração poderá ser autorizada, desde que seus objetivos sejam compatíveis e mediante previsão expressa no Plano de Gestão da UC.

A lei emite sinais controversos e indica uma disputa nos bastidores, já que ao mesmo tempo em que abre a possibilidade de atividade minerária, diz ficar “proibido o exercício de atividades ou empreendimentos efetiva ou potencialmente poluidores, ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental”, numa clara contradição do texto legal.

Salta aos olhos mesmo o fato de que nem a nomenclatura “proteção especial” tenha sido suficiente para que a mineração deixe de ser cogitada nesses espaços. Afinal, não parece possível imaginar como uma proteção tida como “especial” conviva com a atividade minerária

7 Aqui, para ser justo, excetuados os gastos com o Programa Manutenção da Gestão, aqui entendido como custeio básico de toda a máquina pública.
8 Cerca de R$ 980,6 milhões em 4 anos, num orçamento previsto para R$ 74,2 bilhões no período.
9 Dados do SEEG/OC (2023).
10 Vide PPA, figura 5, à página 19.
11 Assembleia Legislativa do Estado do Pará.
Expediente:
Citação sugerida:
Instituto Talanoa, 2024. Panorama amazônico para clima e florestas: o que esperar em 2024 e que desafios se apresentam no caminho até a COP-30?

Aguarde a Parte 2 e 3 deste post…. em breve.

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