Gestão Pública e Tribunais de Contas em tempos de Emergência Climática: um debate necessário

Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado
Podemos utilizar os Tribunais de Contas para qualificar a política climática do país. Esta afirmação deve fazer parte da fala da presidente do Instituto Talanoa, Natalie Unterstell, na próxima segunda-feira, dia 4, em evento no Pavilhão do Brasil na COP28, em Dubai, junto com representantes do Tribunal de Contas da União (TCU) e  da INTOSAI – a Organização Internacional de Entidades Fiscalizadoras Superiores. Nesse sentido, trazemos uma análise do nosso especialista em políticas públicas para a Amazônia, Wendell Andrade, que defende que uma atuação concertada entre Tribunais, órgãos executivos e sociedade civil pode evitar a inviabilidade de programas de governo para apoiar a sustentabilidade do orçamento público.

Abaixo a análise de Wendell Andrade:

Ao olharmos para a realidade brasileira, em que as projeções feitas no passado pela comunidade científica têm se confirmado no presente, com a ocorrência de eventos climáticos extremos de Norte a Sul, em maior número e intensidade, urge trazer para o debate público – e para o centro da tomada de decisão nacional – o papel das mais diferentes instituições no combate à crise climática. Uma das premissas é compreender que, por ser tema transversal e de larga correlação com diferentes áreas do conhecimento humano, cada órgão e entidade do setor público pode contribuir para refrear a emergência. São atuações em formas e níveis distintos, que devem colaborar para que o Brasil alcance as metas estabelecidas na chamada Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC), conforme estipula o Acordo de Paris.

Neste contexto, ganha destaque o papel do Sistema de Controle Externo brasileiro, cujas estrutura e qualidade de atuação são reconhecidas mundialmente. Atualmente, este sistema abrange 33 Cortes de Contas, distribuídas em Tribunal de Contas da União (cujo funcionamento iniciou no ano de 1893), 26 Tribunais de Contas dos Estados, Tribunal do Distrito Federal, 3 Tribunais de Contas dos Municípios do Estado (Bahia, Goiás e Pará) e mais 2 Tribunais de Contas Municipais, específicos para as capitais São Paulo e Rio de Janeiro. Além disso, o sistema alcança uma estrutura de organismos auxiliares como os Institutos Rui Barbosa (IRB) e Serzedelo Corrêa (ISC), e conta com iniciativas como a ATRICON (Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil) e a Rede Integrar, esta última focada na aproximação com os estados, para políticas públicas descentralizadas. Ainda, nos últimos anos o TCU tem ampliado seu alcance a partir da pactuação de uma série de Acordos de Cooperação, comportamento que vai ao encontro das diretrizes propostas pela Agenda 2030 da ONU em seu ODS 17 (Parcerias e Meios de Implementação).

No dia-a-dia da gestão pública, as auditorias operacionais dos Tribunais de Contas geram recomendações e determinações para os órgãos nos quais realiza o chamado Controle Externo. Apesar da clara diferença de taxatividade entre estes dois substantivos, na praxe da Administração Pública o enforcement dos Tribunais – que são estruturas institucionalmente próximas do Poder Legislativo – é tamanho, a ponto de tanto as determinações quanto as recomendações se transformarem em verdadeiras “leis” para os gestores de bom senso e que desejam evitar riscos reputacionais pessoais, questões administrativas relacionadas a seus mandatos, além de penalidades que podem alcançar a dimensão financeira pessoal. O respeito à marca institucional e o poder de influência dos órgãos de contas – elementos de uma cultura cristalizada no Serviço Público brasileiro – fazem com que seja inegável o papel decisivo que o Controle Externo nacional pode assumir em tempos de emergência climática. 

São muitos os fatores capazes de fundamentar esse protagonismo: 

  1. A ótima infraestrutura física, tecnológica e logística dos Tribunais;
  2. A especialização das estruturas organizacionais, hoje em dia muito mais específicas, e ao mesmo tempo abrangentes, que outrora;
  3. O ganho de qualificação de auditores ao longo das últimas décadas, com equipes interdisciplinares e especialistas;
  4. A ampliação da cooperação com importantes organizações não-governamentais com atuação no Brasil, como são os casos da Transparência Internacional e do Imazon, entre outros avanços.

Nos últimos anos, o TCU tem liderado a INTOSAI, uma espécie de “clube” dos Tribunais de Contas do planeta, que atualmente engloba 196 países. Desde 2022, por exemplo, a INTOSAI tem trabalhado em uma proposta de avaliação de implementação de compromissos climáticos dos países, chamada Climate Scanner.

É fato, alertado pela Ciência, de que o aumento da temperatura média do planeta não deve exceder 1,5ºC, a fim de evitar que condições físicas, químicas e biológicas que mantêm a vida na Terra como a conhecemos sejam desreguladas “sem-volta”. Monitoramento especializado afirma que a Humanidade infelizmente já rompeu 1,2ºC – isto é, 80% – desta régua (NASA, 2021). Por isso, a contribuição do Brasil nesse desafio global será tão maior quanto melhor (e mais rápido) o país promover reformas estruturantes que o tragam do passado e o coloquem em linha com os desafios da década. 

O debate sobre a necessidade de uma ampla Reforma Administrativa, por exemplo, só demonstra que o país ainda tem um longo caminho a percorrer para alcançar um serviço público mais presente, eficaz, inteligente e, em consequência, efetivo. Quase sempre marcada pela insegurança jurídica e pelo punitivismo a seus agentes não-políticos – em nossa análise, um dos maiores combustíveis de uma cultura institucional limitante –, a Administração Pública brasileira tem como um de seus “passaportes” para os grandes desafios do século XXI, a exemplo da questão climática, a compreensão de que o avanço do Controle Externo nacional nos últimos anos é um ativo institucional brasileiro dos mais importantes para ampliar a segurança e reduzir os riscos dos mandatos públicos.

Além de fornecer diretrizes para que um bom planejamento de gestão seja feito, ter Tribunais de Contas que incorporam uma abordagem sistêmica atenta à questão climática na aplicação de suas auditorias colabora direta e decisivamente para a sustentabilidade do orçamento público. Isto porque, se as ações de mitigação e de adaptação à emergência climática não avançam nos níveis federal, estadual e municipal, os efeitos de eventos extremos aumentam progressivamente a pressão sobre as contas públicas, na medida em que os custos de reparação de serviços básicos e ações assistenciais (não planejados, portanto tendendo a exorbitar) saltam a ponto de “competir” com os devidos investimentos em áreas como saúde, educação e segurança pública.

Perceba que a linguagem não é mais de projeção futura, e sim de realidade concreta. Nela, um fenômeno tem se tornado cada vez mais comum na gestão pública nacional: o engessamento de mandato, situação na qual o gestor, além de ter de conviver com um planejamento “engolido” por emergências, tem criticamente afetadas suas possibilidades de honrar compromissos de campanha, limitando o modus de seu governo a mero controle de danos, que o leva à austeridade para gestão do estresse orçamentário (o popular “contas no vermelho”), a asfixiar investimentos e, em consequência, a arcar com altos custos de popularidade.

O raciocínio é simples: no Brasil, chefes de Executivo nos três níveis têm, na Lei de Responsabilidade Fiscal, o grande balizador legal para limitar gastos públicos e a capacidade de endividamento, condições para a sustentabilidade fiscal do país. Se a preparação ante a eventos climáticos extremos e outras transformações motivadas pela mudança do clima não figuram entre as prioridades da gestão, os gastos públicos de remediação crescem ao longo do tempo. Ao crescerem, pressionam o orçamento público, cuja disponibilidade financeira é cada vez mais crítica, em razão de problemas com arrecadação e repasses. Ao dispor de menor orçamento e fragilizar sua saúde fiscal, o ente federado limita sua possibilidade de contrair empréstimos para investimentos. Resultado: o investimento público cai, os custos paliativos aumentam, a resolutividade do gestor se mostra limitada e sua reputação e popularidade, em consequência, são ameaçadas.

No campo da governança pública, quanto maior o grau de emergência gerado por um problema coletivo, mais exigida é a capacidade de coordenação para políticas públicas e ações práticas, “na ponta”. Esta capacidade de coordenação não se limita a uma abordagem governamental, e pode/deve alcançar a participação do setor privado e das organizações da sociedade civil (OSCs) nas ações de interesse público. É justamente esta capacidade em aglutinar diferentes atores, com diferentes especialidades, pontos de vista e repertórios de contribuição, e a partir de então agregar valor e efetividade às políticas públicas, que demonstrará aos brasileiros e ao mundo se o Brasil realmente quer (e sabe) fazer governança pública. Tema que, aliás, é obrigatório para que o Brasil ingresse na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), assunto central para os 38 países que atualmente integram o bloco.

No entanto, nem tudo é alerta somente para o Poder Executivo. Dos Tribunais de Contas também se espera melhoria contínua e abandono de velhos estigmas. Um deles é popularmente conhecido como “Síndrome de Gabriela”, segundo a qual o que foi feito sempre de um jeito, deve sempre ser feito daquele mesmo jeito, ou, o que era “assim” deve continuar sendo “assim”, em alusão à famosa canção de Dorival Caymmi, imortalizada na voz de Gal Costa. Esta moldura institucional é perigosa, na medida em que afasta o espírito de inovação que também deve contagiar o setor público e terá de ser parte do jogo contra a crise climática. Em função disso, quando o Executivo ousar inovar, muitas vezes buscando maneiras de fazer mais em menos tempo e com menos recursos, é preciso levar em conta o sempre presente risco de errar, inerente a todo processo inovativo. Desta forma, os Tribunais não devem perder a disposição para o olhar de inovação, buscando compreendê-lo nos entes jurisdicionados. Historicamente, o baixo grau de tolerância e a abordagem muitas vezes inflexível das Cortes de Contas levaram mais a repelir do que a estimular o espírito inovador em órgãos executivos.

No processo de amadurecimento das instituições, é sempre importante ter em mente que a inovação ocorre de maneira muito similar ao método científico: são as eventuais falhas provenientes da experimentação recorrente que justamente formarão a base que um dia fará a inovação vingar. O Princípio da Reciprocidade se impõe e mostra que somente o espírito inovador pulsante em quem julga pode motivar o espírito inovador naquele que é julgado.

Se os especialistas em liderança mundo afora estiverem certos quando utilizam o célebre jargão de “o que nos trouxe até aqui não necessariamente será o que nos levará daqui em diante”, o protagonismo do Controle Externo brasileiro na questão climática é parte essencial do que pode levar o Brasil aonde ele até já ensaiou estar, mas nunca se consolidou: um país que reduz progressiva e sustentadamente as emissões de gases de efeito estufa, conserva sua biodiversidade, promove uma transição energética consistente e reduz as desigualdades sociais.

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