Abra os olhos para o imbróglio dos Abrolhos

Imagem do Parque Nacional dos Abrolhos

Fonte: ICMBio

Nesta semana, o IBAMA publicou uma portaria normativa para anular um ato de 2006 que, por decisão judicial, estava suspenso há mais de dez anos e definia os limites da Zona de Amortecimento (ZA) do Parque Nacional Marinho de Abrolhos. A anulação nesta semana cumpre determinação judicial emitida no início deste mês. É o desfecho de embates que duraram mais de 15 anos.

Para entender a norma editada agora, é necessário recuperar o histórico da elaboração da Portaria IBAMA no 39, de maio de 2006 e os imbróglios que se seguiram até sua suspensão. Para começar, por que foi criada a ZA de Abrolhos?

O que são os recifes de coral

Os recifes de coral são estruturas vivas, formadas pelo acúmulo de esqueletos de animais e vegetais, como corais, moluscos e algas calcárias. Para sua construção, é necessária a atuação conjunta de uma infinidade de seres que formam uma complexa teia de associações e eventos em sucessão. Os corais são os seres que prevalecem neste ambiente – animais marinhos, que se mantêm fixos no mesmo local até o fim de suas vidas, por isso o nome genérico de recifes de coral.

Os recifes estão em permanente crescimento e formam enormes ecossistemas, sendo o mais diverso habitat marinho. Por isso, possuem grande importância econômica, social e cultural, representando fonte de alimento e renda para milhares de comunidades costeiras.

Os recifes estão para o ambiente marinho como as florestas tropicais estão para os ambientes terrestres – os maiores centros de biodiversidade do planeta. Devido às exigências ambientais de crescimento desses organismos, as condições ideais para o desenvolvimento dos recifes de coral encontram-se entre 23°C e 25°C de temperatura média anual da água, na faixa tropical da Terra.

Mas exatamente por toda essa intrincada teia de vida, os recifes de coral estão entre os ambientes mais ameaçados do mundo. Estudos registram que já foram perdidos aproximadamente 50% desses ambientes. E as previsões do IPCC apontam que, com 1,5oC de aumento da temperatura, já teremos o desaparecimento de 70% a 90% dos recifes. Com o aumento de 2,0oC, perdem-se praticamente todos. Dessa forma, esses ambientes são apontados como os primeiros ecossistemas a serem funcionalmente extintos com os atuais níveis de emissão dos gases de efeito estufa.

Criar e ampliar áreas marinhas protegidas são as principais ações para aumentar a saúde desses ambientes, propiciando o aumento de sua capacidade de resiliência frente ao aumento de temperatura.

O Brasil possui os únicos ambientes recifais do Atlântico Sul, que ocorrem do Maranhão até o sul da Bahia, mapeados pela primeira vez em 2003. Nesses ambientes, destaca-se o banco dos Abrolhos¹, o maior banco de corais e mais importante berçário das baleias jubartes do Atlântico Sul. Além disso, abriga e recebe espécies de tartarugas e aves marinhas, e uma infinidade de peixes e invertebrados, compondo a maior biodiversidade marinha do Brasil. Abrolhos possui ainda as únicas formações recifais no formato de grandes cogumelos, os chamados “chapeirões”. Eles formam colunas de coral de até 20 metros de altura, que se erguem abruptamente do fundo, abrindo em arcos perto da superfície. A principal espécie formadora dos chapeirões é o coral-cérebro, endêmica da Bahia.

Um levantamento rápido da biodiversidade da região registrou aproximadamente 1.300 espécies, 45 delas consideradas ameaçadas, segundo as listas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) e a ainda atual, publicada pela Portaria 445/2014, do Ministério do Meio Ambiente (MMA).

Parque dos Abrolhos: o primeiro Parque Nacional Marinho do Brasil

Em 1983, foi criado o primeiro Parque Nacional Marinho do Brasil, o Parque dos Abrolhos, por meio do Decreto n° 88.218, representando um marco para a conservação marinha brasileira. No entanto, o parque, abarcando dois polígonos distintos, cobre apenas 87.943 ha desse enorme banco, representando 0,92% de toda sua área. No banco dos Abrolhos, encontram-se também três Reservas Extrativistas Marinhas: Canavieiras, mais ao norte; Corumbau, contígua aos limites do Parque Nacional de Monte Pascoal; e Cassurubá, nos manguezais mais ao sul, no município de Caravelas, onde fica a sede do Parque Nacional (ver figura).

Mapa das Unidades de Conservação no Banco dos Abrolhos. Fonte: Conservação Internacional, 2014

Petróleo no banco de Abrolhos e a zona de amortecimento

Em 2003, aconteceu a primeira ameaça de leilão de um bloco de petróleo na área do banco. Na época, o MMA reuniu os maiores especialistas em biodiversidade marinha, que elaboraram um parecer contrário ao leilão. O ministério ganhou, então, a queda de braço com o Ministério de Minas e Energia, afastando momentaneamente o fantasma que rondava os Abrolhos. E o Ministério Público Federal obteve o congelamento das ofertas da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), em uma ação civil pública movida pela sociedade civil.

Entendendo a fragilidade da situação, visto o tamanho reduzido da unidade de conservação, foi organizado um grande e completo estudo para subsidiar a delimitação das zonas de amortecimento do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos e da RESEX Marinha do Corumbau por meio da avaliação de impactos potenciais de derramamentos de óleo. O estudo realizou simulações para o caso de algum tipo de vazamento em alguma das possibilidades de colocação de blocos de exploração.

Desse modo, de maneira ousada, o IBAMA, gestor das UCs federais à época, definiu a Zona de Amortecimento do Parque abrangendo toda a área do banco dos Abrolhos, incluindo os manguezais adjacentes ao banco. Proibiu-se, em toda a sua extensão, “qualquer atividade de exploração e produção de hidrocarbonetos”. A ZA, estabelecida pela portaria IBAMA 39/2006, tinha o tamanho de 9,7 milhões de ha, sendo 100 vezes maior do que o Parque.

Carcinicultura e o banco de Abrolhos

Na mesma época, porém, outra ameaça se colocava na região: estava prevista a implantação do maior empreendimento de carcinicultura na área dos manguezais de Caravelas, com o aval do Governo do Estado da Bahia. Esse grupo, sentindo-se ameaçado pela instituição da ZA, subsidiou o MME e o governo do Espírito Santo a contestarem a legalidade da Portaria com base na justificativa de que o ato de tamanha expressão deveria ser definido em instrumento de igual poder hierárquico ao ato que criou a UC, ou seja, um Decreto ou uma Lei. A Casa Civil consultou o MMA e a Advocacia-Geral da União. O MMA emitiu parecer concluindo pela legalidade da Portaria, em razão da Lei do SNUC não ter exigido a instituição de zonas de amortecimento por meio de lei ou decreto. No entanto, a Controladoria Geral da União (CGU) acatou a justificativa do pleito², entendendo que a ZA só poderia ser estabelecida por meio de ato do Poder Público (lei ou decreto), a exemplo das próprias unidades de conservação. Este último posicionamento veio, por fim, a ser adotado pela Secretaria de Assuntos Jurídicos da Casa Civil. Dessa forma, em 2007 foram suspensos os efeitos da ZA do parque e concedida liminar contra o IBAMA, afirmando que o presidente do órgão não teria a competência para definir tal norma.

Em 2007, mesmo com a ZA suspensa, após o Estado da Bahia emitir licença para a instalação do projeto de carcinicultura, a Justiça concedeu liminar suspendendo a construção do maior projeto de criação de camarões do país, em uma área 1.500 ha de manguezais, restingas, lagoas costeiras e nascentes no Complexo de Abrolhos. A liminar foi fruto de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal. De acordo com a liminar concedida pelo juiz Ailton Rocha, a possível degradação ambiental causada pela carcinicultura e a consequente exploração de zona costeira foram determinantes para que a competência do licenciamento fosse atribuída ao IBAMA e não ao Estado da BA.

Todas essas discussões impulsionaram a articulação e a solicitação dos pescadores artesanais locais para que o governo reconhecesse suas áreas tradicionais e sua luta contra a especulação imobiliária e a proposta de implantação na região do maior projeto de carcinicultura do país. Desse modo, em 2009, o próprio presidente da República, foi pessoalmente à região para a criação da Reserva Extrativista do Cassurubá, nos manguezais da região de Abrolhos. A RESEX de Cassurubá abrange uma área de 100.687 ha de estuários, restingas, mangues e ambientes marinhos entre as cidades de Caravelas e Nova Viçosa, Bahia, beneficiando cerca de 1.000 famílias de pescadores e marisqueiros que dependem dos recursos naturais da região, compondo o mosaico de Unidades de Conservação hoje existente no Banco dos Abrolhos.

A disputa judicial sobre a zona de amortecimento de Abrolhos

Em 2010, o juiz Márcio Flávio Mafra Leal deu uma decisão de primeira instância ao caso, em que reconhecia a qualidade técnica dos estudos da ONG Conservação Internacional – CI e determinando uma faixa de 50 km ao redor do parque onde a ANP não poderia mais oferecer blocos exploratórios de petróleo. Em 2011, o desembargador Olindo Menezes, em segunda instância (TRF-1a Região), revogou essa decisão liberando a exploração de petróleo em blocos que estavam descartados desde 2003.

Mesmo suspensa, a Portaria de 2006 ainda era a única que reconhecia uma zona de amortecimento do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos e vinha servindo, pelo menos tecnicamente, nas argumentações contra possíveis licenciamentos de novos blocos ofertados sob ou perto do banco dos Abrolhos, como aconteceu em 2019. A polêmica em torno da inclusão de um bloco na bacia sedimentar de Camamu-Almada, passando por cima dos pareceres técnicos do IBAMA e ICMBio, afugentou investidores e resultou em um leilão fracassado, sem interessados.

Em 2021, mesmo após toda essa polêmica, a ANP insistiu em incluir blocos em áreas consideradas igualmente sensíveis como na bacia Potiguar, de Pelotas e na Foz da Amazonas, fracassando novamente.

No entanto, todos esses blocos “encalhados”, até mesmo o próximo a Abrolhos na bacia de Camamu-Almada, foram disponibilizados, pela ANP, na modalidade de oferta permanente. E estão previstos para abril um novo leilão, praticamente um saldão de ofertas, e ainda o deslocamento de blocos para áreas afetadas pelo grande derramamento de petróleo de 2019.

Finalmente, a Portaria Normativa 14/2022

Nesta semana, com a publicação da Portaria Normativa Nº 14, de 18 de março de 2022, anulando em definitivo a Portaria de 2006, Abrolhos fica novamente sem nenhuma proteção além da existência das UC. Terá sido proposital esta anulação? Por que essa anulação agora?

O Parque Nacional Marinho dos Abrolhos continua sem possibilidade de ampliação de seus limites. Como ficam os recifes de coral do banco dos Abrolhos – os mais importantes e biodiversos de todo Atlântico Sul? Vamos continuar contando apenas com o receio jurídico de aparecerem interessados em explorar petróleo nessas áreas sensíveis?


¹O nome Abrolhos vem da língua portuguesa, tendo primeiramente sido registrado em diversos mapas como um aviso aos navegadores por frequentes acidentes e naufrágios causados pela formação de corais e que dificultavam a navegação: “Abre Olhos” (https://embarquenaviagem.com/2014/04/22/os-encantos-arquipelago-dos-abrolhos)

²NOTA Nº AGU/MC – 07/2006, de lavra do Exmo. Sr. Consultor-Geral da União à época, Dr. Manoel Lauro Volkmer de Castilho, datado de 16 de agosto de 2006. Referida nota foi aprovada, para os fins do disposto no artigo 4º, XI da Lei Complementar nº 73/93, pelo Exmo. Sr. Ministro Advogado-Geral da União à época, Dr. Álvaro Augusto Ribeiro Costa. https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=nota+n%C2%BA+agu%2Fmc


O que é uma Zona de Amortecimento?

Segundo a Lei do SNUC uma zona de amortecimento é: “o entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade”, não trazendo mais detalhes de como se constitui uma ZA. Inexiste, pois, qualquer exigência legal para que a zona de amortecimento seja estabelecida por ato de igual hierarquia daquele que criou a unidade de conservação.

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