Clique na imagem para acessar a publicação (versão atualizada em 14 de abril de 2021, com retificações nas páginas 18, 19, 33 e 98 e nas referências bibliográficas)
Nos dois primeiros anos do Governo Bolsonaro, houve 82 atos infralegais da administração pública federal com impactos relevantes na atividade pesqueira e na biodiversidade aquática no Brasil. As publicações dessas normas – medidas provisórias, decretos, portarias, instruções normativas, resoluções e outros tipos normativos – se intensificaram no decorrer do mandato presidencial, aponta o relatório Pesca por Inteiro – Histórico, Panorama e Análise das Políticas Públicas Federais, lançado pela POLÍTICA POR INTEIRO. Em 2019, foram 35 medidas. Em 2020, chegaram a 47.
“Observamos a boiada, ou melhor, uma grande ‘rede de arrasto’ passando nos nossos ambientes aquáticos – mar e águas continentais – silenciosa e despercebida pela grande mídia, mas trazendo consequências irreversíveis”, afirma Fábio Ishisaki, autor da publicação e analista jurídico da Política Por Inteiro. “O relatório aponta os atos dos dois primeiros anos de governo, mas continuamos acompanhando e monitorando em 2021, e a tendência é a mesma.”
Essa lista de atos começa com a Medida Provisória editada no primeiro dia do Governo Bolsonaro (posteriormente convertida em lei), pondo fim à gestão conjunta dos recursos pesqueiros entre o Ministério do Meio Ambiente e a Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca (Seap). Todo o Sistema de gestão compartilhada foi extinto, e o ordenamento pesqueiro foi alocado apenas no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). “Isso significa que hoje a pesca é tratada no país apenas como um setor produtivo, desprezando a questão de que se trata da extração de recursos naturais finitos. A tendência é de uma “tragédia dos comuns”. Enquanto isso, a pesca colapsa em todo o mundo”, afirma Natalie Unterstell, coordenadora da POLÍTICA POR INTEIRO.
Esse entendimento culminou, em dezembro de 2020, com o Decreto 10.576, que abriu caminho para a cessão de águas públicas da União (como reservatórios de hidrelétricas e o mar territorial) para aquicultura, sem uma análise do ponto de vista socioambiental, em uma tendência clara de privatização das nossas águas e com a intenção de intensificar a introdução de espécies exóticas invasoras. Desregulando-se tal processo, há um risco gigantesco de danos irreversíveis à biodiversidade, com reflexos socioeconômicos para comunidades costeiras e ribeirinhas.
Além dos atos públicos, o relatório Pesca por Inteiro mostra como a pesca é um dos temas preferidos do presidente Jair Bolsonaro, seja em suas lives ao lado do secretário de Aquicultura e Pesca, Jorge Seif Junior. E como essa predileção pelo assunto se reflete nas políticas ou falta de políticas para o setor.
Judicialização
Com a inépcia do Executivo e a falta de andamento de respostas no Legislativo para o desmonte das políticas ambientais na pesca – e outros setores, a judicialização tem sido uma estratégia para a manutenção das normas protetivas. Exemplo disso é a “guerra” entre a União e os Estados sobre a competência dos entes federativos para a elaboração de normas mais restritivas. Caso emblemático é o do Rio Grande do Sul, que tomou para si a prerrogativa e proibiu em suas águas o arrasto em toda a extensão do mar territorial confrontante. A União recorreu e até agora está sendo bem sucedida com um parecer controverso do ministro do Supremo Tribunal Federal, Kassio Nunes Marques – primeiro empossado por Jair Bolsonaro na Corte.
Apagão da estatística pesqueira e as consequências para biodiversidade
O Brasil não tem estatística oficial pesqueira desde 2009. Isso significa que há mais de 10 anos não sabemos quem pesca, onde se pesca e nem quanto se pesca no Brasil. A pesca relaciona-se intrinsecamente com a biodiversidade marinha e de águas continentais. Acompanhar com a maior precisão possível os volumes e as espécies pescadas e os locais em que a atividade ocorre é essencial para entender a sobrepesca (quando uma espécie é pescada num ritmo mais acelerado do que sua capacidade reprodutiva, caminhando, assim, para a extinção).
Outro instrumento importante das políticas de conservação da biodiversidade é a publicação da Lista Nacional Oficial de Espécies da Fauna Ameaçadas de Extinção – Peixes e Invertebrados Aquáticos e atos desencadeados a partir dela, como os Planos de Ação Nacionais para Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção-PAN. A última lista foi publicada em 2014, apontando 475 espécies de peixes e invertebrados aquáticos da fauna brasileira como ameaçadas de extinção. A Portaria MMA 445/2014 pela qual a lista foi divulgada foi questionada judicialmente, pois incluía diversas espécies de valor comercial.
O relatório Pesca por Inteiro conta como esse imbróglio travou, por três anos, a implementação de políticas para a proteção das espécies aquáticas ameaçadas de extinção. Após o destravamento jurídico, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) criou um grupo de trabalho para avaliar e recomendar ações de conservação e manejo sustentável para as espécies identificadas. A partir daí, foram publicados nove Planos de Recuperação. Todos em 2018. E todos sem implementação nem continuidade na atual gestão.
Reformas institucionais, flexibilização e desregulação de normas
Todos os atos analisados no relatório Pesca por Inteiro foram captados e enquadrados em uma das 11 classes utilizadas na metodologia desenvolvida pela Política Por Inteiro para o monitoramento das normas com impacto em clima e ambiente no Diário Oficial da União (conheça mais sobre a metodologia).
A classe que mais apareceu foi “regulação”, com 36 atos. É um resultado esperado na análise dos atos infralegais, uma vez que devem orientar a implementação das políticas públicas. Nesse caso, novas políticas sem a presença da área ambiental.
Confirmando a tendência das novas políticas, a segunda, a terceira e a quarta classes mais comuns foram: “flexibilização” (19 atos), “reforma institucional” (12 atos) e “desregulação” (5 atos). Tratam-se de três categorias que sinalizam mudanças nos direcionamentos das políticas públicas. Normalmente, as medidas de reforma institucional preparam terreno para flexibilizações e desregulações.
Exemplo disso foi o que aconteceu com o esvaziamento de colegiados, como o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Por meio do Decreto Federal 9.806, em 2019, houve uma redução drástica dos assentos (de 96 para 23) e da representatividade no órgão, que passou a ser composto majoritariamente por votos da ala governamental, algo que não se vislumbrava na antiga formação – mais plural e diversificada. Com isso, em setembro de 2020, na 135ª Reunião Ordinária do Conama, foram revogadas resoluções como a Resolução 303/2002, que oferecia especial proteção às restingas e manguezais, locais sabidamente importantes para a conservação da biodiversidade marinha, principalmente por representarem local de refúgio e reprodução das espécies. A questão acabou judicializada.
O relatório Pesca por Inteiro destaca ainda as desregulações ambientais dentro de Unidades de Conservação – como a possibilidade de pesca esportiva e a liberação da pesca de sardinha no Parque Nacional de Fernando de Noronha; o polêmico programa de recifes artificiais; o enfraquecimento da fiscalização do Ibama; o processo de fusão do ICMBio com o Ibama e outras boiadas, ou melhor, redes de arrasto.
Pesca por Inteiro traça, além da análise dos últimos dois anos de atos infralegais do Executivo federal, um panorama histórico das políticas públicas para o setor da pesca no Brasil. O que se percebe é que o atual governo prosseguiu e aprofundou um desmonte já em curso.