A mãe de todas

(O conteúdo que você vai ler a seguir é feito totalmente por humanos, e para humanos)

Manaquiri (AM), 10/09/2024 - Vista aérea de rio e seca na comunidade em Manaquiri. Foto: Ricardo Stuckert/PR.

Um anúncio tão inesperado quanto bem-vindo inaugurou o mês de outubro: está aberta a Consulta Pública para a revisão da Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), a “peça-mãe” de todos os esforços climáticos do Brasil. Nascida a partir de um acúmulo científico e institucional que vinha sendo angariado pelo Brasil desde os anos 1990, a PNMC nasce como Lei ali, no finalzinho de 2009, no pós-COP da decepcionante Copenhague, na Dinamarca. À época, como não existia Acordo de Paris – muito menos NDC! – a Lei assumia o papel de formalizar o compromisso climático brasileiro não só para dentro de casa, como também para o mundo. A mensagem era clara: o Brasil se alçava a reduzir entre 36% e 39% das emissões de gases do efeito estufa (GEE), em comparação ao que era projetado para 2020. 

Nos mais de 16 anos que separam a antiga do que virá a ser a nova PNMC, o mundo mudou bastante. Em 2009, segundo a insuspeita NASA, o planeta apresentava 388 partes por milhão de dióxido de carbono (ppmCO2) na atmosfera, contra 427 ppmCO2 agora, ultrapassando por muito o convencionado científico de 400 ppmCO2, que poderia evitar grande parte da desordem do sistema climático. A energia solar já existia ali e acolá, mas, a depender do lugar, ainda era investimento alto, muitas vezes economicamente inviável. Hoje, tamanho o barateamento da tecnologia, o país já produz tanta energia solar que, por vezes, sequer consegue usar (ou estocar) a produção, “abarrotando” o sistema. 

De 2009 a 2025, não foi só Orkut e Facebook que nas redes cederam protagonismo a Instagram e TikTok. Inteligência artificial, então… era tema de filmes de ficção científica, não vida cotidiana. O mundo tem mudado com eventos climáticos cada vez mais intensos e frequentes; refugiados climáticos têm se multiplicado, assim como a quantidade de processos judiciais que têm o clima como pano de fundo; a omissão e a inércia de governos agora é motivo de responsabilização para a Corte Internacional de Justiça; no Brasil, já se falava em adaptação, embora longe de ser prioridade, como começa, finalmente, a se normalizar hoje. São incontáveis as transformações que temos atravessado nos últimos 16 anos. Por isso, a atualização da PNMC é um dever do Estado brasileiro. Suas metas, que em 2009 olhavam para 2020, expiraram no ano em que a pandemia estourou. Agora é hora de revisá-las, e fazê-las dialogar com a nova NDC brasileira, que, por sua vez, lança o olhar para 2035.

Fontes do governo consideram o lançamento da consulta pública um “grande passo”. Todavia, a batalha deverá enfrentar seus percalços: com um Congresso que não quer nada com coisa nenhuma quando a pauta na mesa é pavimentar o caminho para um futuro de baixo carbono, o Executivo precisará avaliar qual o melhor momento para encaminhar o Projeto de Lei (PL) ao Legislativo. 

O Grupo Técnico de Trabalho criado em 2023 pelo Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima (CIM) com a missão de atualizar a PNMC havia concluído a proposta há mais de um ano e, desde então, ela vinha sendo guardada para voltar à tona em momento favorável. Pode ser que o anúncio desta semana, então, não seja exatamente só uma mera coincidência com uma melhor fase vivida pelo governo, no momento. Logo em seu Artigo 1º, a proposta não foge a um dever civilizatório básico dos nossos tempos e emplaca um net zero no Projeto de Lei. Outra palavra-chave que também não aparecia na norma de 2009 é aquela que existe para garantir que uma política pública fique de pé e ande. Agora, o artigo 1º não pára em “princípios, objetivos, diretrizes e instrumentos”, e incorpora governança aos compromissos, sendo ela condição inafastável para o “atingimento de emissões líquidas zero” de gases estufa até 2050 (ou antes, né?) e à “promoção da resiliência climática” em território nacional. 

Outro ponto essencial da proposta é manter a política climática brasileira atrelada ao contexto do desenvolvimento sustentável e aos esforços para erradicação da pobreza, algo que já figurava no texto de 2009 e que é impassível a qualquer controle de constitucionalidade, já que expressamente protegida pelo art. 3º da própria Constituição. Trata-se, portanto, de uma batalha que transcende ideologias e partidarismos, impondo-se como uma questão civilizatória do Estado de Direito. 

Há de se destacar, também, o fato de a Consulta Pública não estar sendo proposta a toque de caixa. As contribuições vão até o dia 1º de dezembro, o que significa, portanto, 2 meses de tempo para o debate aberto. Sinal positivo. Até porque, com a avalanche de compromissos neste clima de COP30, é importante que haja tempo para que a sociedade possa se debruçar com calma sobre algo tão basilar ao que deverá fundamentar as políticas públicas brasileiras em todas as áreas, em todos os níveis.

Não deixa de indicar, também, um lampejo de coragem do governo, em meio a sucessivos embates com um Congresso em que tem minoria. É claro que, em se tratando da legislatura atual – que já demonstrou ter sensibilidade rarefeita à emergência climática, para dizer o mínimo – não há blindagem para a possibilidade de jabutis que tentem desfigurar a proposta original da PNMC. É preciso estar atento ao que virá em 2026. As ruas já mostraram que podem, sim, brecar quelônios e bandidagens. 

Numa semana movimentada em Brasília, não podemos deixar de registrar uma icônica vitória, daquelas que não são de partido A ou B, mas de cidadania, senso de coletividade e apreço à Constituição: a elevação do teto de isenção do Imposto de Renda. Aprovada pela Câmara, a proposta ainda terá de ir ao Senado, mas sua aprovação é dada como certa. Por mais que o texto desse Projeto de Lei não traga nenhuma menção direta ao enfrentamento da mudança do clima, é sempre válido lembrar que a origem da injustiça climática é a desigualdade. Dessa forma, ainda que de modo incremental, toda medida que busque reduzir essa desigualdade, e ampliar o repertório econômico de famílias em situação mais vulnerável, tende a preparar melhor quem menos pode diante de eventos climáticos extremos. No fim das contas, não é só sobre as justiças tributária e social. Pode respingar também – e tomara – em justiça climática. 

Faltam 37 dias para a COP30.


Boa leitura!

TÁ LÁ NO GRÁFICO

Com a Semana do Clima de Nova York e a Assembleia Geral das Nações Unidas fechando setembro, a expectativa era de que muitos países apresentassem seus planos climáticos (as Contribuições Nacionalmente Determinadas, NDCs) com metas atualizadas até 2035 à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática (UNFCCC). Apesar das 20 submissões na última semana do mês, o total de NDCs 3.0 (como são chamadas as contribuições deste ciclo) só chegou a 68, muito aquém das 195 Partes que deveriam fazê-lo sob o Acordo de Paris. Setembro era o prazo limite para que o documento pudesse ser contabilizado no Relatório Síntese das NDCs que será publicado antes da COP30.

Algumas Partes, como a China e a União Europeia ainda não submeteram suas NDCs, mas já anunciaram suas metas de redução de emissões de gases do efeito estufa (GEE) para 2035. Esses anúncios tampouco trazem otimismo para fechar a lacuna de ambição necessária para limitar o aquecimento global do planeta a menos de 1,5ºC em relação ao período pré-industrial. 

O Tá Lá no Gráfico desta semana analisa NDCs e metas apresentadas e discute a resiliência do Acordo de Paris.

FRASE DA SEMANA

ABC DO CLIMA

Meios de Implementação: são condições necessárias aos países – com ênfase naqueles em desenvolvimento – para alcançar os objetivos estabelecidos no Acordo de Paris. Envolvem financiamento (o quanto de dinheiro é preciso?), transferência de tecnologia (acesso às tecnologias necessárias) e construção de capacidades (processo que envolve o aprimoramento de conhecimentos, habilidades, instituições e recursos para apoiar ações climáticas). A expressão está literalmente no Artigo 14 do Acordo de Paris como um dos elementos a serem monitorados periodicamente para avaliar se estamos progredindo nos objetivos do tratado e transformando em ação e resultado aquilo que foi acordado no papel: “A Conferência das Partes, na qualidade de reunião das Partes deste Acordo, fará periodicamente um balanço da implementação deste Acordo para avaliar o progresso coletivo rumo à consecução do propósito deste Acordo e de seus objetivos de longo prazo (denominado Balanço Global – GST, na sigla em inglês). Fará isso de forma abrangente e facilitadora, considerando a mitigação, a adaptação e os meios de implementação e apoio, e à luz da equidade e da melhor ciência disponível.”

MONITOR DE ATOS PÚBLICOS

Nosso Monitor de Atos Públicos captou 16 atos relevantes para a política climática nesta semana. Os temas mais recorrentes foram Institucional e Terras e Territórios, com 4 atos cada. Já a classe mais captada foi Regulação, com 5 normas, seguida de Lei, com 4. Entre as leis, classe não muito frequente no ranking semanal, está o pacote de financiamento para a Agricultura Familiar e a Lei do Pantanal.

Pacote para a Agricultura Familiar

Nesta semana, a agricultura familiar recebeu reforços importantes. O já lançado Plano Safra da Agricultura Familiar foi oficializado, com a alteração da lei original de 1991, consolidando o instrumento de crédito e definindo que a agricultura familiar passa a contar com um Plano Safra específico. Foi também editada a lei do Programa de Aquisição de Alimentos – PAA para priorizar a destinação de alimentos adquiridos de agricultores familiares para os municípios em situação de emergência ou calamidade pública. Ganha a produção familiar e ganha o processo de resposta aos eventos extremos. Os percentuais do Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE também foram alterados, agora 45% dos recursos devem ser destinados para aquisição de alimentos diretamente de organizações familiares, assentamentos da reforma agrária, comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas e grupos de mulheres.

E o que isso tem a ver com o clima? Tudo.

A segurança alimentar é peça-chave na agenda de adaptação climática, ainda mais quando conectada ao protocolo de resposta aos eventos extremos e ao financiamento da produção agrícola de grupos que cumprem um papel fundamental nos territórios, promovendo soluções que geram, além de alimentos saudáveis, co-benefícios de mitigação e adaptação.

Marco contra a poluição plástica nos oceanos

Foi publicada a Estratégia Nacional Oceano sem Plástico – ENOP, o compromisso do Brasil reconhece o oceano e os ecossistemas costeiros e marinhos como componentes essenciais para a regulação do clima, incluindo as regiões polares e a porção austral. A ENOP traz diretrizes para políticas públicas de prevenção, redução e eliminação da poluição por plástico, para o período de 2025 a 2030, e será coordenada pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, em conjunto com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, o Ministério da Pesca e Aquicultura e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.

Enfrentar a poluição plástica no oceano, considerando o ciclo de vida e os padrões de consumo, promover a transição para alternativas mais sustentáveis ao plástico de uso único e garantir acesso equitativo aos recursos naturais, considerando os modos de vida dos povos e comunidades tradicionais estão entre os objetivos da ENOP. A partir de agora os órgãos envolvidos têm 90 para apresentar o Plano de Ação da Estratégia.

A agenda de oceano teve avanços importantes neste ano, como o andamento do Planejamento Espacial Marinho – PEM e a adesão ao Mangrove Breakthrough, para proteção e restauração de manguezais. Assim o tema vem se consolidando como central para o governo brasileiro.

BRASIL

Bioeconomia: consulta pública se encerra

Encerrada no dia 4 de outubro a consulta pública sobre o texto-base da Política Nacional de Desenvolvimento da Bioeconomia (PNDBio).

AdaptAÇÃO no MCid

O Ministério das Cidades lançou edital para seleção do projeto AdaptAÇÃO, que vai apoiar municípios no planejamento urbano para enfrentar os efeitos da crise climática. Serão selecionadas 50 propostas de municípios ou consórcios, que receberão assessoria técnica especializada para aprimorar instrumentos como zoneamento, zonas especiais de interesse social (Zeis), regularização fundiária e estudos de impacto de vizinhança. O objetivo do projeto é apoiar a atualização de seus instrumentos de política urbana com perspectiva climática. As inscrições vão até 21 de outubro. A iniciativa é uma parceria do ministério com a UFRJ e o Observatório das Metrópoles.

MUNDO

Indicadores de adaptação em discussão em Bonn 

Após a publicação dos potenciais indicadores do Objetivo Global de Adaptação (GGA), os especialistas se reúnem nesta sexta (3) e sábado (4) com as Partes para discutir lacunas e melhorias na lista apresentada. Embora o processo esteja muito perto de sua conclusão, alguns temas contenciosos precisam ser discutidos e acordados, como os indicadores de meios de implementação e, especialmente, o indicador de financiamento público internacional (10c06), que atualmente conta com quatro opções para apreciação das Partes.

Quer saber mais sobre os indicadores do GGA? Produzimos dois Tá Lá no Gráficos sobre essa temática: “100 indicadores sobre o GGA. E agora? e “Indicadores de Adaptação Climática”.

OLADE: a transição energética se asfixia em gás

A X Energy Week da Organização Latino-Americana de Energia (OLADE) revelou, mais uma vez, a força e a persistência do lobby fóssil no espaço regional. A conferência, que deveria ser um fórum para consolidar a cooperação em torno da transição energética, foi fortemente marcada pela presença de empresas e representantes do setor de petróleo e gás, promovendo narrativas de que o gás “natural” seria “indispensável” ou “combustível de transição”. Esse discurso vem sendo reforçado pelo uso seletivo do parágrafo 29 do Global Stocktake, que “reconhece que combustíveis de transição podem exercer um papel em facilitar a transição energética enquanto garantem a segurança energética”. A menção aos chamados “combustíveis de transição” tem servido como brecha para legitimar a expansão da infraestrutura de gás na região, obscurecendo o debate sobre alternativas limpas e de baixo carbono.

É preciso afirmar com clareza: o gás natural não é um combustível de transição. Ele é mais um fóssil, que perpetua a dependência de infraestruturas poluentes, cria riscos de lock-in e atrasa a urgência de investimentos em energias renováveis, armazenamento e eletrificação. A aposta nesse caminho não só contraria a retórica de compromissos climáticos assumidos pelos países latino-americanos e caribenhos, como também ameaça sufocar a construção de uma agenda energética justa, inclusiva e realmente sustentável para a região.

TALANOA POR AÍ

Foto: Instituto Talanoa/Divulgação

A analista sênior Marta Salomon apresentou o tema “Adaptação, riscos e oportunidades” em um evento direcionado a CEOs do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), em São Paulo.

TALANOA NA MÍDIA

Pipeline Valor Econômico Natalie Unterstell e Ester Athanásio publicaram um artigo defendendo um Sistema Nacional de Mudança do Clima.
Veja Em entrevista ao podcast da Veja+Verde, Natalie Unterstell destacou a agenda de adaptação para proteção de vidas e sistemas econômicos.
163.com Na imprensa chinesa, repercutimos a expectativa sobre liderança chinesa e a decepção diante de uma meta para 2035 nada ambiciosa.
Entrando no Clima O podcast de O Eco ouviu Taciana Stec sobre os destaques na Semana do Clima de Nova Iorque.
The Dialogue A presidente da Talanoa também comentou sobre a aposta incongruente do Brasil ao continuar esperando lucro do Petróleo, enquanto o mundo já decidiu a transição para longe dos fósseis.
E+Mais Energia Contribuímos na elaboração de um artigo sobre Transição Justa e Prosperidade Econômica.

Bom fim de semana,
Equipe POLÍTICA POR INTEIRO

Equipe Editorial (Liuca Yonaha, Marta Salomon, Melissa Aragão, Ester Athanásio, Marco Vergotti, Renato Tanigawa, Taciana Stec, Wendell Andrade, Daniel Porcel, Caio Victor Vieira, Beatriz Calmon, Rayandra Araújo e Daniela Swiatek).

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