Marajó: adaptar ou perecer

Por Beatriz Calmon, Caio Victor Vieira, Daniel Porcel e Taciana Stec

CAPÍTULO I - Dançar, curtir, ficar de boa

No mês de março, fomos voando ao Pará. Foi tacacá para lá, planejamento estratégico para cá, políticas internas aqui e desenho de cenários futuros para lá.

Deu sexta-feira, enfim. Dois beijinhos no rosto de cada uma. Entre o “fica com Deus” dos mais devotos, o “vai na paz” dos mais estoicos, e o “até mais, primas” dos anedóticos,  parte das Talanoers decidiu postergar a estadia. Motivados pela curiosidade mista com a Ilha do Marajó.

Pede o carro tarifa Planet, pega a lancha, pega a van e, depois, ainda caminha uns bons quilômetros.

Chegam à pousada. No caminho, já percebemos disrupções ambientais: óleo de diesel cintilando nos cantos da Baía do Marajó e barcos danificados pela seca histórica do ano passado.

Ecoansiosas, curiosas e famintas, pisamos no maior arquipélago flúvio marítimo do planeta. Mais especificamente em Soure,  a capital nacional do búfalo. Não somente isso, era época de chuvas, no conhecidíssimo inverno amazônico, quando a sensação térmica não baixa dos 27ºC e não se sabe se há mais água caindo dos céus ou correndo nos leitos dos rios.

Capítulo II - O Marajó

Chegamos a um território que brilha por sua sociobiodiversidade e sua riqueza cultural, mantida com orgulho por tantos e tantas marajoaras, horando uma história ancestral indígena de tempos pré-colombianos. Não era só outro Brasil, tão diferente de nossas realidades urbanas do Centro-Oeste, Sul e Sudeste.

Era também outro Pará, rural por essência, com ecossistemas muito diversos e específicos misturados, muito diferente de Belém. Com forte vocação para o turismo, e com ânsias de serem notados pelo resto do Brasil (o resto do mundo parece já ter valorizado o Marajó), os marajoaras têm grandes planos para o futuro.

No entanto, o arquipélago do Marajó é considerado um dos territórios mais vulneráveis às mudanças climáticas no Brasil (Pereira, 2024). De acordo com a Estratégia Nacional de Adaptação (ENA) e o Plano Setorial de Povos e Comunidades Tradicionais, a região é crítica para adaptação climática.

Seus povos e comunidades tradicionais que habitam historicamente o arquipélago, por sua vez, têm seus modos de vida diretamente afetados pelo aumento da temperatura global, e principalmente, pelo aumento do nível do mar.

Nove metros acima do nível do mar é a média de altitude do arquipélago que está entre o Oceano Atlântico e uma vasta bacia hidrográfica fluvial amazônica. Diversas projeções indicam que parte dele pode ficar debaixo d’água, caso o mundo siga no ritmo de emissões dos dias atuais.

Somado a isso, o Marajó aparece nos rankings nacionais com índices baixíssimos de desenvolvimento humano (IDH), carecendo de acesso a serviços essenciais e básicos de políticas públicas de saúde, saneamento, educação, entre outros. Uma receita trágica para um cenário de eventos extremos cada vez mais recorrentes.

Projeção da Climate Central sobre o aumento do nível do mar na Ilha do Marajó, em 2050.
Foto: Instituto Talanoa/Divulgação

A praia do pesqueiro

No café da manhã, enquanto um de nós reclamava da ausência do cosmopolitan nos menus de drinques da ilha, reparamos que havia um alerta repetido nas recomendações de turismo dos marajoaras: algo de errado estava acontecendo com a Praia do Pesqueiro. Pois, muito bem. Fomos lá averiguar.

No trajeto inteiro, o taxista se furtava a nos contar realmente o que tinha acontecido na

noite passada e o que vinha acontecendo há algum tempo. Se contendo a dizer que “ainda dava para curtir”, a gente se entreolha ao som do tecnobrega da preferência do motorista.

Chegamos à Reserva Extrativista Marinha do Soure. Mais especificamente, na famosa Praia do Pesqueiro, apenas para constatar o que passamos na semana anterior discutindo: a adaptação climática é urgente.

Foto: Instituto Talanoa/Divulgação

Quem mora no litoral conhece uma moral: quem perto do mar constrói, cedo ou tarde, a maré pode levar. No geral, esse aprendizado é direcionado para construções irregulares em áreas “privilegiadas”, onde deveria haver a restinga preservada, funcionando como uma barreira natural.

Praias aterradas, com calçadões erguidos sem planejamento adequado, também padecem do mesmo problema. Mas, nessa manhã, ao pisar na Praia do Pesqueiro, sabíamos que se tratava de algo mais grave, e mais complexo. Justamente pela abissal diferença de marés nas praias amazônicas do Marajó, as construções dos quiosques são elevadas, em aproximadamente três metros.

Chegar pela primeira vez a um lugar, sabendo que ele já não é mais o mesmo, evoca uma sensação de perda, ainda que sejamos turistas, numa praia distante das nossas casas. 

Não conhecemos a Praia do Pesqueiro na sua forma original. O processo de avanço da maré que já durava semanas, parecia ter chegado ao limite: vimos o ponto de não retorno acontecer ali, diante dos nossos olhos.

Enquanto um senhor com seu búfalo nos convidava para tirar uma foto – típico atrativo turístico do Marajó -, nossos olhares se fixaram naquele cenário distópico. A maré continuava cheia, e a areia na praia era quase nula.

Ao redor, escombros. Nós, os únicos turistas.

Alguns moradores tratavam de transmitir a sensação de que estava tudo bem, que era só uma maré de inverno numa noite de lua cheia. Enquanto caminhávamos pelos restaurantes com suas estruturas caídas, nos dávamos conta de que a destruição deixada pela maré era sem precedentes.

Lá estavam os locais, avaliando as perdas e danos, discutindo a inevitável reconstrução.

A Dona Maria

Lá estava Dona Maria[1], uma senhora negra e de baixa estatura da Vila do Pesqueiro, orientando os rapazes sobre o que deveriam recolher dos escombros. Discutindo com sua comadre o orçamento para uma reconstrução suficiente para reerguer o restaurante onde trabalhava  até o dia anterior.

Dona Maria sentiu nosso pavor ao nos aproximarmos da cena, e diferentemente de outros comerciantes locais, admitiu a tragédia. Numa simpatia cotidiana, explicou tudo o que havia ocorrido aos turistas assustados, de uma forma arrebatadora: desde seus nove anos de idade, não havia acontecido um evento dessa dimensão.

A razão? As mudanças climáticas, o degelo do oceano e o modo de vida predatório do ser humano.

O modus operandi: um poder público que negligencia os riscos e a vulnerabilidade de seu território, outras vezes afetados por eventos extremos. Políticos que só aparecem em período eleitoral, enquanto a população perde seus meios de trabalho, suas casas, sua dignidade. O racismo ambiental em sua face mais escancarada.

No entanto, ao conversar sobre o futuro,

Dona Maria era muito menos pessimista que nós “especialistas em políticas climáticas”. Resiliência é a palavra que define o que sentimos ao escutar seus planos para o futuro: capacitar-se em turismo comunitário, realizar experiências gastronômicas e melhorar o turismo na região. Diga-se de passagem, não há valor nenhum em romantizar sua situação. Mas Maria nos havia deixado sem chão, depois de uma conversa que mais pareceu um aprendizado que dura a vida toda.

Nos olhos de quem nasceu, brincou, cresceu e trabalha naquele território vimos a desolação. Sem saber o que fazer, nem para onde ir, os moradores sentiam também o abandono do poder público. Dona Maria, nascida e criada da comunidade do Pesqueiro, gostaria de ter a mesma importância neste momento que teve em tempos de eleição. Para ela tudo está interligado, o derretimento das geleiras, o aumento do nível do mar e a maré. A compreensão dos impactos da mudança do clima direciona também o seu futuro. Enquanto sonha em estudar turismo ecológico, questiona-se se as belezas do Marajó resistirão ao aumento da temperatura do planeta. Preocupada com o próprio destino, inexoravelmente ligado ao da sua comunidade.

[1] Nome fictício

A crise climática

O curioso é que a solução de última hora convencionada pelos comerciantes e pescadores locais é inspirada na natureza. Resume-se a mimetizar a restinga e colocar algum tipo de miscelânea de flora com o intuito de segurar o morro de areia 

no lugar. Idealmente, de inspirada na natureza deveria se instaurar uma solução baseada na natureza com a restauração da restinga, bem como adaptar as residências e os comércios ao novo nível máximo da maré.

Foto: Instituto Talanoa/Divulgação

Entre tudo aquilo, nós quatro, quatro nós na garganta e uma vontade de mundo.

Uma pausa para se consolar e acabou o modo férias, passamos a registrar tudo. Diferenças nos pontos máximos da maré em diferentes pontos da praia, a quantidade de plásticos acumulada dentro

da própria floresta, a sobrevivência dos manguezais, a interação rio-mar, pontuações sobre a Estratégia Nacional de Adaptação; sobre o Global Goal on Adaptation; sobre Perdas e Danos e, claro, sobre o fatídico caso do Rio Grande do Sul.

Foto: Instituto Talanoa/Divulgação

O plástico e o isopor foram sujeitos que renderam assunto. Um de nós lembrou que o Brasil votou contra a deliberação sobre um Tratado Internacional sobre o fim da Produção Plástica. E enquanto os fabricantes de plástico e conservadores da indústria petroquímica vetam a mera possibilidade de uma redução gradual e transição à economia circular de embalagens, o marajó entope de embalagens de uso único, descarte de isopor utilizados nas redes de pesca e em microplásticos.

É óbvio que o isopor tem responsabilidade local, mas o plástico, não. Vem carregado maré abaixo e rio acima. Pouco importa. Não ficou nada físico para trás. O resto das casas, das cozinhas, das palafitas se somavam ao resto do consumo plástico diante daquele cenário de terra arrasada.

O mar levou a casa e trouxe o lixo. E a vida vai, não volta mais.

Foto: Instituto Talanoa/Divulgação

O caso não é isolado. Dona Maria não é a única; a primeira ou a última. Porém, é retrato. Melhor, o encontro é sintoma, é tomografia de corpo adoentado, tornado doente, e que não distribui a febre de maneira igual a todas, nem mesmo a todos.

Não é a primeira vez que nenhum de nós quatro se depara com cenários assim. Tudo o mais constante, nem a última. Não escrevemos esse relato porque é a primeira vez que a teoria encontrou a realidade diante de nós, menos ainda por estarmos abismados perante o novo óbvio, mas por não ainda não 

termos perdido a capacidade humana de nos chocar.

Dali em diante, tudo foi resto. Até achamos o cosmopolitan, mas e daí? O Marajó vai caindo com o céu e pensar que essa pode ser a última vez que pisamos na ilha antes das petroleiras abrirem outra fronteira de petróleo, em plena Amazônia, não só com o aval, porém com o incentivo do Governo Federal, é algo que nos acompanhou nas duas horas de barco em retorno a Belém.

Antropoceno ou antropocídio?

Foto: Instituto Talanoa/Divulgação

Equipe Editorial (Liuca Yonaha, Marta Salomon, Melissa Aragão, Ester Athanásio, Marco Vergotti, Renato Tanigawa, Taciana Stec, Wendell Andrade, Daniel Porcel, Caio Victor Vieira, Beatriz Calmon, Rayandra Araújo e Daniela Swiatek).

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