
O adeus ao papa dos pobres também é a despedida do papa que abriu caminho para a agenda climática no Vaticano. Inédito por tantas razões, o primeiro pontífice a adotar o nome “Francisco” construiu um legado de diplomacia climática que partiu da mais alta instância de poder religioso e irradiou para o restante do mundo. A homenagem a São Francisco de Assis, “guia e inspiração em ecologia integral”, faz jus ao pontificado edificado pelo primeiro papa latinoamericano e jesuíta. Para São Francisco, a natureza era “um livro esplêndido onde Deus nos fala e transmite algo da sua beleza e bondade”. Assim como o padroeiro dos animais e do meio ambiente, Jorge Bergoglio pregou o amor aos pobres e à natureza, o que combina – e muito – com a agenda de justiça climática, ainda tão incipiente nas esferas de decisão.
Logo nos primeiros dois anos na posição mais elevada da Igreja Católica, Francisco colocou cientistas e teólogos para trabalhar juntos pelo clima. Como fruto de fé e ciência, colheu dados e construiu conclusões que originaram um documento muito rico, publicado em maio de 2015: o Laudato Si, primeira Encíclica papal totalmente dedicada ao clima. O “Louvado Sejas”, na tradução para o português, é uma carta do Santo Padre sobre o cuidado com a Casa Comum, forma como os Jesuítas se referem à Terra, ao Planeta e à natureza.
Em um texto riquíssimo – tanto em matéria cristã quanto climática, Francisco tratou de defender que a crise do mundo é uma só: a emergência climática não poderia ser dissociada da desigualdade social, da miséria e da violência contra os mais vulneráveis – para quem Cristo padeceu crucificado segundo a fé cristã. “A violência, que está no coração humano ferido pelo pecado, vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que «geme e sofre as dores do parto» (Rm 8, 22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2, 7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos”, defendia. Em referência a São Francisco de Assis, a Terra – celebrada no dia seguinte ao falecimento do papa – é mencionada na carta tanto como irmã, com quem compartilhamos a vida e a existência, mas também como mãe, “que nos acolhe em seus braços”, escreveu o papa.
Francisco foi intencional no ofício como diplomata pelo clima. “Agora, à vista da deterioração global do ambiente, quero dirigir-me a cada pessoa que habita neste planeta (…) Nesta encíclica, pretendo especialmente entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum”, explicou. Não por acaso, naquele mesmo ano (2015) seria assinado o Acordo de Paris na COP21, um verdadeiro marco das negociações globais pelo clima, quando se estabeleceu o limite de 1,5ºC como meta a ser perseguida para que evitemos os mais catastróficos cenários do aquecimento global.
Ao contrário do que negacionistas – que também habitam templos religiosos – e outros fundamentalistas religiosos podem dizer, seu olhar íntegro para a desordem socioambiental tinha amparo no Evangelho de Cristo, que pregou o amparo aos marginalizados e compreendia a natureza como parte perfeita da criação divina, sempre pronta a prestar culto ao Criador. Na missão em prol do clamor da Terra, Francisco fez mais do que discurso – que já seria bastante relevante considerando a força global da Igreja Católica. O menor país do mundo aderiu à Convenção-Quadro das Nações Unidas para Mudança do Clima (UNFCCC) em 2022, tornando-se signatário do Acordo de Paris e adquirindo poder de decisão nas instâncias de negociação da ONU.
No ano passado, o Vaticano deu sinais positivos na agenda de transição energética, investindo para se tornar autossuficiente em eletricidade com energia renovável. Por meio de carta apostólica, intitulada “Irmão Sol”, publicada em junho de 2024, o papa anunciou um sistema agrovoltaico em uma propriedade da Igreja fora do Vaticano, que poderia suprir as necessidades da cidade-Estado. E, em dezembro, foi inaugurada a cobertura de painéis solares sobre o telhado do Museu do Vaticano.
Os sinais deixados pelo papa argentino também seguiram pela igreja ao redor do mundo, provocando o nascimento de movimentos cristãos em prol da agenda de justiça climática. O Movimento Laudato Si, criado em 2015, é coordenado por católicos de todo o mundo em harmonia com “pessoas de boa vontade” e prega a conversão ecológica. No Brasil, recentemente, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou uma estratégia de incidência da igreja na COP30. A coalizão reuniu lideranças religiosas de África, Ásia, Oceania, América Latina e Caribe. Em uma perspectiva de fé mais abrangente, o Instituto de Estudos da Religião – ISER criou o programa Fé no Clima para capacitar fiéis de diferentes denominações religiosas a abordarem a crise climática em suas comunidades de fé.
Para além da preocupação com o futuro da igreja, o pontificado de Francisco apontou para o futuro de todos os habitantes da Terra, traduzida como em parábolas na expressão Casa Comum. Que o próximo Conclave tenha fresca a mensagem – e a urgência – da mudança do clima. Aos que já se converteram à ecologia e à justiça climática, a perda de Francisco vem acompanhada de consolo registrado em suas próprias palavras: “Caminhemos cantando; que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta não nos tirem a alegria da esperança”.