Que “desenvolvimento” é esse, SUDAM?

Planta da Usina Termelétrica (UTE) Azulão I, de responsabilidade da empresa Eneva, em Silves, Amazonas. Foto e reprodução: SUDAM.

No final de agosto, o Monitor de Atos da Política por Inteiro detectou uma resolução da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) que aprovou o financiamento de R$ 1,02 bilhão para a construção de uma termelétrica a gás no município de Silves, na região metropolitana de Manaus, Amazonas. Trata-se da UTE Azulão II, com capacidade instalada de 590 MW, potência similar a outras termelétricas instaladas na Amazônia nos últimos anos, a exemplo da UTE Novo Tempo, com 620 MW, em Barcarena, no Pará, também financiada com dinheiro público, do BNDES.

Os recursos para a UTE Azulão II saem da conta do Fundo de Desenvolvimento da Amazônia (FDA), mecanismo de financiamento público gerido pela SUDAM com o objetivo de investir em “infraestrutura, serviços públicos e empreendimentos produtivos” capazes de estimular “novos negócios”. Acontece que, de “novo”, uma termelétrica a gás natural não tem nada: do ponto de vista do clima, é uma das formas mais carbono-intensivas de gerar energia. Além disso, o funcionamento de termelétricas é mais caro, tornando-as menos eficientes. Não parece ser assim que se promove “transição energética”.

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A termelétrica da vez chama-se Azulão II porque a que a antecede na ordem numérica já havia tido financiamento aprovado pela mesma SUDAM, no final de 2023. A UTE Azulão I, com capacidade estimada em 360 MW, é financiada pelo Estado brasileiro em pouco mais de R$ 600 milhões. Somadas, as duas termelétricas no Amazonas chegam a quase R$ 2 bilhões em financiamento público.

A empresa beneficiada pelo incentivo no ato da SUDAM – Sparta 300 – é controlada pela Eneva, uma gigante do setor de energia. Em outra frente de atuação da companhia, a exploração de blocos de óleo e gás,  os contratos de concessão estão suspensos pela Justiça Federal desde junho. A decisão da Justiça atendeu pedido do Ministério Público Federal (MPF) para que sejam garantidos os direitos indígenas e de populações tradicionais afetadas por esses projetos. Constatou-se que não foi realizada consulta prévia, livre e informada das comunidades impactadas.

Apesar de o nome gás natural subconscientemente remeter o público geral à ideia de Natureza, não se pode deixar enganar: é um combustível fóssil, retirado das profundezas do subsolo assim como o petróleo, e suas extração e queima são tão prejudiciais à conta das mudanças climáticas quanto o “irmão” mais famoso. E mais: a depender do teor de metano presente no gás, pode até mesmo ser mais nocivo à atmosfera do que o petróleo, demonstra estudo publicado na revista Nature, entre tantos outros.

No campo político-institucional e da integridade dos gastos públicos, uma análise no regulamento do FDA liga um claro alerta aos Ministérios da Fazenda (MF), Minas e Energia (MME) e do Desenvolvimento Regional (MIDR): ele determina que todo investimento público deve “verificar a adequação dos pedidos de financiamento à Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR)”. Ora, ao se constituir um balizador que alia “desenvolvimento”, “qualidade de vida” e “oportunidades” em seu escopo, a PNDR deveria indicar que investimentos em queima de combustível fóssil, sobretudo com o estímulo público, só aumentará os prejuízos sociais em saúde, adaptação, infraestrutura, trabalho e demais setores da vida em sociedade, colidindo com as próprias oportunidades que se propõe a estimular. Não obstante, a SUDAM opta por alavancar uma opção fóssil para gerar energia elétrica.

Vale dizer que o FDA é composto por recursos do Orçamento Geral da União e rendimentos das aplicações financeiras desse mesmo orçamento. Ou seja: é arrecadação incidente sobre o contribuinte sendo utilizada para intensificar a crise climática.

Na Amazônia, esse impacto é ainda mais crítico, uma vez que o histórico déficit infraestrutural na região tende a potencializar os efeitos das mudanças climáticas sobre seus habitantes. A centralidade da questão climática, diretriz amplamente propalada dentro e fora do governo – que recentemente se tornou pacto no federalismo brasileiro – não deixa dúvidas de que ministérios e suas autarquias vinculadas são sabedores de que gastos públicos que atentam contra o clima não têm mais espaço na nova realidade em que vivemos.

Curiosamente, nos últimos dias, o Conselho Deliberativo da SUDAM expediu resolução que, ao definir diretrizes e prioridades para aplicação de recursos do FDA em 2025, coloca “preservar o meio ambiente”, “apoiar iniciativas que visem [a]o uso sustentável dos recursos naturais” e “promover o desenvolvimento sustentável” entre suas principais diretrizes. Investir em termelétricas a gás vai na exata contramão da norma. Ao mesmo tempo, o próprio CONDEL/SUDAM parece admitir a existência de uma lacuna técnica em suas deliberações ao, também em resolução, mover uma moção que propõe a criação de um Comitê Técnico Permanente para “analisar previamente à decisão do Conselho” e, com isso, orientar melhor a tomada de decisão na autarquia.

Os desafios da interligação e da transição

Fato é que não é fácil resolver o quebra-cabeça da política energética no Brasil. Parte considerável do país ainda opera na forma de sistemas isolados, isto é, territórios desconectados do chamado Sistema Interligado Nacional (SIN). Assim, a produção termelétrica no Amazonas se destina a consumo na própria região Norte, especialmente a Roraima, estado que sofre essa desconexão. Essa situação demanda atenção especial e uma política planejada de investimentos em energia para, na prática, assegurar o ininterrupto funcionamento de máquinas e equipamentos que, no fim das contas, são parâmetros de desenvolvimento local, a exemplo do funcionamento de hospitais para intervenções cirúrgicas, o resfriamento de câmaras e laboratórios com produtos perecíveis (carne, vacinas) e demais aspectos básicos da vida em sociedade.

Acontece que, no cenário “mundo ideal”, termelétricas simplesmente não deveriam ser solução, pois vão na contramão da redução de emissões; já no cenário “mundo real”, as termelétricas não só têm ganhado força, como também contam com investimentos públicos (leia-se: do contribuinte) para isso. Um terceiro cenário, mais realista e propositivo, o de um “mundo possível”, a matriz termelétrica deveria apresentar, de modo transparente e compreensível, um plano de contenção (em vez de expansão) com progressivos desincentivos financeiros e redução paulatina do uso, na medida em que soluções para produzir energia elétrica a partir de fontes renováveis cresçam no grid brasileiro. No pior e mais indesejável dos cenários – como levam a crer algumas decisões governamentais de investimentos recentes e já programados para os próximos anos – essa modalidade de produção de energia elétrica seguirá agarrando investimentos públicos e fazendo o país derrapar em sua rota de descarbonização.

Por outro lado, sem o fornecimento atual das termelétricas amazonenses, Roraima teria ampliada sua dependência energética em relação à Venezuela, histórica fornecedora de energia (e diesel) àquele estado. Essa camada transnacional evoca uma questão inevitável, sobretudo pela situação de desordem institucional do país vizinho: segurança energética. O termo é comumente associado a outro que quase sempre é utilizado para justificar investimentos públicos mais-do-mesmo, à revelia do clima: soberania nacional. Podemos e devemos falar em transição energética, por seu papel central no compromisso de descarbonização de qualquer país no mundo, mas é fato que não se podem desconsiderar as lacunas e vulnerabilidades que o Brasil ainda acusa na região Norte, onde é mais nítida a inequidade no acesso à energia de qualidade.

Para fazer a lição de casa, o governo brasileiro até tem priorizado políticas como a Nova Indústria Brasil – que dedica um de seus seis eixos à transição energética – e à transformação ecológica como faróis para o modelo de desenvolvimento do país. Na contramão, investimentos em térmicas de base fóssil levantam o questionamento: é esse o tipo de desenvolvimento que o governo brasileiro deseja para a Amazônia?

A Política por Inteiro recomenda que as Superintendências e Agências de Desenvolvimento regionais passem por uma urgente atualização legislativa com “banho de loja” sobre Ciência da Mudança do Clima. Muitas das normas que direcionam investimentos nessas instituições são das décadas de 1990 e 2000, o que tem aberto “brechas” para aplicações que não cabem mais no novo contexto climático.

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