Ao mesmo tempo em que o governo brasileiro busca superar as próprias divergências internas para criar um Plano de Bioeconomia que possa chamar de seu, o país propôs recentemente um desafio ainda maior: colocar na pauta do G20 a Iniciativa de Bioeconomia. A ideia é trazer, na declaração final da reunião de líderes do grupo, em novembro deste ano, uma reflexão sobre os princípios orientadores desse conceito. Em ambos os casos, o caminho não será fácil.
Na pauta do governo, a bioeconomia tem aparecido no centro de várias iniciativas recentes, que buscam promover o uso sustentável dos chamados “recursos naturais” e impulsionar a inovação neste setor estratégico. No entanto, para que elas avancem como instrumentos efetivos para o equilíbrio econômico, climático e ambiental, um impasse ainda precisa ser superado: a falta de uma definição clara e unificada sobre este conceito. Esta carência vem dificultando a elaboração de estratégias que possam ser eficazes como política pública. Além disso, pode abrir brechas para que outras atividades se aproveitem, por exemplo, de incentivos fiscais que sejam destinados a essas práticas.
Em junho deste ano, o lançamento da Estratégia Nacional da Bioeconomia foi um passo importante no processo, já que trouxe uma interpretação bem delineada sobre o termo. Não está claro, no entanto, se isso será suficiente para resolver a disputa em torno do que realmente significa a bioeconomia dentro do próprio governo e entre os setores acadêmico e empresarial.
Um olhar para a história deste conceito mostra que o impasse em defini-lo não é novo e nem uma exclusividade do Brasil. Ele começa a ser debatido nas décadas de 1960 e 1970 a partir da percepção de que o modelo econômico neoclássico, de crescimento ilimitado, apresentava sinais de insustentabilidade. É então que pesquisadores começam a propor uma nova abordagem, em que os processos produtivos estivessem inseridos em um sistema circular e limitado pela biosfera. A ideia era integrar a teoria biológica ao campo econômico. De lá para cá, essa concepção foi sendo aprimorada e integrada aos planos estratégicos de vários países, porém com adaptações relativas aos interesses e recursos de cada nação.
Políticas de bioeconomia vêm sendo inseridas dentro de três vertentes (veja tabela abaixo). Em comum, as três visões tratam do uso de matéria-prima de base biológica para a produção de bens e serviços, mas cada uma dessas visões, a partir dos diferentes objetivos, adota caminhos distintos.
VERTENTES DA BIOECONOMIA |
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Um termo, muitos conceitos
No Brasil, o foco das discussões sobre bioeconomia tem priorizado ações diretamente relacionadas à região Amazônica, já que o país abriga a maior parte da floresta mais biodiversa do planeta. Mas isso está longe de ser um consenso. A definição do termo apresentada pela Embrapa, por exemplo, propõe que a bioeconomia seja considerada um “modelo de produção industrial baseado no uso de recursos biológicos, (que tenha como objetivo) oferecer soluções para a sustentabilidade dos sistemas de produção com vistas à substituição de recursos fósseis e não renováveis”.
Já a Confederação Nacional da Indústria (CNI) entende que a atuação da entidade e do setor industrial deve ser trabalhada como um recorte, dentro de um amplo conceito. A partir dessa perspectiva, esse recorte de Bioeconomia é definido como “resultado de uma revolução na inovação aplicada aos recursos biológicos e está diretamente relacionada à invenção, ao desenvolvimento, e ao uso de produtos e processos nas áreas da saúde humana, da produtividade agroindustrial, da biotecnologia e de vários segmentos industriais”.
De acordo com um relatório publicado em 2022 pelo Climate Policy Initiative (CPI/PUC–Rio), o Brasil vem dispondo de um amplo conjunto normativo também regulamentado nessas diferentes vertentes de bioeconomia. Um dos exemplos no nível subnacional é o estado do Pará, que de forma pioneira na Região Amazônica instituiu seu Plano Estadual de Bioeconomia (PlanBio/PA) em 2021, abrindo caminho para a discussão de um conceito amazônico para o tema e para o debate nas demais subnacionais da região.
Mais recentemente, a Estratégia Nacional de Bioeconomia, lançada no dia 5 de junho, trouxe um dos conceitos mais adaptados à realidade do país, considerando a bioeconomia um “modelo de desenvolvimento produtivo e econômico baseado em valores de justiça, ética e inclusão, capaz de gerar produtos, processos e serviços, de forma eficiente, com base no uso sustentável, na regeneração e na conservação da biodiversidade, norteado pelos conhecimentos científicos e tradicionais e pelas suas inovações e tecnologias, com vistas à agregação de valor, à geração de trabalho e renda, à sustentabilidade e ao equilíbrio climático.”
Os substantivos empregados na construção desse conceito se interrelacionam de modo a evitar armadilhas que levem a bioeconomia a abraçar elementos como soja, pecuária, gás natural, petróleo e eucalipto, gêneros econômicos que, por seu poderio econômico e capacidade de lobby, poderiam forçar uma “bioeconomização” de suas atividades. Dessa forma, grandes categorias como energias não-renováveis, monoculturas e florestas de produção se afastam do conceito, quer pela ausência de preocupação efetiva com a conservação da biodiversidade, quer pela não-colaboração com o equilíbrio climático ou, ainda, pela ausência de conhecimentos tradicionais associados ao processo produtivo e à agregação de valor.
Esta Estratégia, no entanto, é apenas um documento inicial que antecede a criação de um Plano Nacional de Desenvolvimento da Bioeconomia, programado para ser divulgado em até dois meses trazendo dados sobre recursos, ações, responsabilidades, metas e indicadores para o setor. É então que a tradução deste conceito em normas e diretrizes será testada por interesses de diferentes setores, como o agronegócio.
O Estado brasileiro tem, no momento, duas decisivas lições de casa: a primeira delas é alinhar o conceito definido no planejamento da Estratégia Nacional de Bioeconomia com (a) as políticas públicas macro que estão em fase inicial de implantação, como o Plano de Transformação Ecológica (PTE), o Plano Nova Indústria Brasil (NIB) e o Plano Nacional de Transição Energética (Plante), além de (b) políticas setoriais já em implementação, a exemplo do Plano Agricultura de Baixo Carbono (ABC+) e os próprios Planos de Ação para Prevenção e Combate ao Desmatamento (PPCDs) em todos os biomas, dentre os quais o PPCDAm é o expoente.
A segunda tarefa é destinar meios e recursos suficientes para garantir que a Bioeconomia seja um instrumento efetivo de redução de desigualdades, trazendo oportunidades a segmentos sociais desprovidos de lastro e evitando que o conceito seja “sequestrado” por grandes grupos econômicos. Vale lembrar que o Brasil já passou por isso: o conceito de Manejo Florestal – que em 2006 levou o Brasil a ter a importante Lei de Gestão de Florestas Públicas – outrora tida como um instrumento de desenvolvimento local com função de “destinação de florestas públicas às comunidades locais” (art. 4º), é hoje dominado por grandes grupos econômicos no âmbito das concessões florestais, já que comunidades tradicionais e associações de famílias que vivem na e da floresta não conseguem atingir os requisitos mínimos ligados à viabilidade financeira de editais públicos, devido à ausência de capital financeiro, à baixa capacidade organizativa, entre outros entraves.
Um desafio também multilateral
Se o desafio interno já é grande, o internacional é ainda maior. Para estabelecer diretrizes que podem influenciar mecanismos de financiamento multilaterais de apoio à proteção do meio ambiente e à sustentabilidade, as 20 maiores economias do mundo também terão que chegar a consensos sobre prioridades e eixos de atuação. Em termos conceituais, as políticas dos países diferem bastante. Nos Estados Unidos e em outras nações industrializadas do Norte Global, por exemplo, o conceito é centrado nas perspectivas biotecnológicas e de biorrecursos, com políticas que incluem incentivo à substituição de matéria-prima fóssil por recursos biológicos, como a biomassa. Contudo, estudos vêm indicando que essa não é necessariamente uma prática sustentável, já que pode resultar na superexploração e destruição de florestas. É o que defendem países com alto índice de diversidade biológica, como Brasil, Costa Rica e Malásia, onde o foco é nas estratégias de bioecologia, com propostas para o desenvolvimento sustentável que considerem a manutenção da biodiversidade. Esse é um dos desafios a serem superados, como destaca, por exemplo, o relatório Innovation Ecosystems in the Bioeconomy, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), publicado em 2019. Portanto, no contexto internacional, cabe ao Brasil defender um conceito de bioeconomia em que a promoção da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados pesem mais do que a lógica de produção exploratória dos recursos da biodiversidade, das comunidades tradicionais e dos povos indígenas.
A disputa pelo conceito de bioeconomia surge a partir da identificação de um problema amplo e global, sem que haja uma resposta única para solucioná-lo. Talvez o maior desafio para que o tema se traduza em políticas públicas eficazes seja a compreensão de que sua conceituação não precisa ser homogênea nem limitante, mas sim trazer uma essência capaz de estabelecer diretrizes claras para direcionar respostas urgentes ao problema central – resgatar o equilíbrio ambiental e climático do planeta – sem deixar margens para seu uso indevido. Para tal, a bioeconomia precisa estar em constante construção e englobar os diferentes atores envolvidos no processo, evitando ser um vetor de exacerbação das desigualdades. Com vontade política e um razoável capital de coordenação dentro do Estado, ela pode ser também um agente promotor de equidade social.