Bolsonaro na ONU: um discurso sem futuro

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, discursou nesta terça-feira (20) na 77ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Tradicionalmente, o Brasil é o primeiro país a ocupar a tribuna da plenária. Isso acentuou o contraste da fala do brasileiro com os discursos do secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, e do presidente desta edição da assembleia, Csaba Kőrösi, que abriram a reunião. Enquanto Guterres e Kőrösi dedicaram um grande espaço à emergência climática e as responsabilidades de todos, incluindo países, empresas, organismos e pessoas, para lidar com a crise, Bolsonaro não citou literalmente a palavra “clima” e expressões relacionadas (“desastres” ou “eventos climáticos”, “mudanças climáticas” etc).

Jair Bolsonaro iniciou o discurso falando sobre o tema da 77ª Assembleia Geral da ONU: “Um momento divisor de águas: soluções transformadoras para desafios interligados”. “O tema escolhido para este Debate Geral gira em torno de um conceito que se aplica perfeitamente ao momento que vivemos: um divisor de águas”, disse. Porém, em vez olhar para o que está além da correnteza que atravessamos e apresentar compromissos para essa travessia, mirou para trás. Em vez de olhar para as águas que virão, olhou para as águas passadas. E, em muitos momentos, a vista pareceu embaçada. Faltou transparência. Foi um discurso sem futuro, no pretérito – e podemos dizer, imperfeito, já que muito do que foi alcançado pelo Brasil até aqui, em termos de clima e meio ambiente, não foi construído nos últimos quatro anos.

A POLÍTICA POR INTEIRO avalia os discursos do presidente brasileiro na ONU sob a perspectiva dos compromissos apresentados ou não na agenda climática e socioambiental (leia aqui a avaliação anterior). Nesta edição, a pontuação alcançada por Bolsonaro foi de -23 pontos, de uma escala de -26 e a +26, na qual quanto mais negativo o valor, menos comprometimento com ações nos temas que monitoramos. Para cada item, avaliamos se houve menção e, se houve, se foi “Bom”, “Razoável”, “Neutro”, “Ruim” ou “Péssimo”.

O resultado é a soma das pontuações de cada item de acordo com seus pesos: “Bom” tem peso +2; Razoável, peso +1; “Neutro”, peso 0; “Sem menção” e “Péssimo” têm peso “-2”.

 

Metas de redução de emissões

  • Reforça compromisso imediato/Implementar NDC – Sem menção
  • Desmatamento ilegal zero até 2030 – Péssimo
    A palavra “desmatamento” não apareceu no discurso. Sobre o tema, o presidente afirmou que 2/3 do território nacional são cobertos de vegetação nativa, “tal qual em 1500”, dando a entender que não são necessários esforços adicionais e ignorando que os recordes de desmatamento (exemplo: nos primeiros meses de 2022, recorde de desmatamento na Amazônia – 3.998 km², desde 2016, início da série histórica do Deter/Inpe).

 

Mudança do Clima

  • Adaptação e resiliência – Sem menção
  • Transição energética e descarbonização da matriz – Neutro
    Bolsonaro falou bastante sobre a matriz energética do Brasil: “Cerca de 84% da nossa matriz elétrica atualmente é renovável, e esse é o objetivo que muitos países desenvolvidos esperam alcançar somente depois de 2040 ou 2050”, disse. O presidente afirmou que o país “começou sua transição energética há quase meio século, em reação às crises do petróleo daquela época” e citou o potencial do Brasil se tornar exportador de energia limpa, com aumento de produção de eólicas e solares. Porém, não mencionou esforços para descarbonização, ignorando os recentes direcionamentos a térmicas a carvão.
  • Considera o senso de urgência referente ao Relatório do IPCC – Sem menção
  • Apresenta ações de neutralidade para 2050 – Sem menção

 

Biodiversidade

  • Assume metas de proteção para todos os biomas – Sem menção
  • Ataca as causas do desmatamento e perda de biodiversidade – Péssimo
    Como dito anteriormente, o presidente não falou sobre “desmatamento”, nem usou o termo “biodiversidade”. A COP15, que ocorrerá em Montreal em dezembro e foi citada no discurso de Guterres, não apareceu na fala de Bolsonaro.

 

Agropecuária

  • Ações para transição para agricultura de baixo carbono – Péssimo
    Bolsonaro falou sobre a produção de alimentos, mas não citou ações para aumento da eficiência da agropecuária – necessárias para a redução das emissões do setor e também ignorando que a questão da fome não é o volume de alimentos produzidos, mas sua má distribuição, como disse o secretário-geral Guterres.

 

Democracia e direitos

  • Compromete-se a respeitar os direitos indígenas – Ruim
    O presidente lembrou que mais de 20 milhões de pessoas vivem na Amazônia, incluindo os povos indígenas e ribeirinhos. Mas não falou sobre as constantes violações de direitos a esses povos. Foi citado apenas como realização levar internet a escolas e comunidades. “É fundamental que, ao cuidarmos do meio ambiente, não esqueçamos das pessoas: a região amazônica abriga mais de 20 milhões de habitantes, entre eles indígenas e ribeirinhos, cuja subsistência depende de algum aproveitamento econômico da floresta. Levamos internet a mais de 11 mil escolas rurais e a mais de 500 comunidades indígenas.”
  • Compromete-se c/ participação popular e diálogo – Sem menção

 

Financiamento

  • Empenha orçamento compatível com a ambição climática – Sem menção
    Em contraste com o discurso do secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, que tratou de financiamento como elemento prioritário para desenvolvimento sustentável, Bolsonaro não falou sobre o tema.
  • Intenção de contribuir p/ precificação de carbono – Sem menção
    Bolsonaro mencionou uma das “uma das menores pegadas de carbono do mundo” ao citar o potencial de produção de energia renovável, principalmente no Nordeste, mas não entrou no tema da precificação e estruturação de um mercado de carbono em si.

 

O processo de acessão do Brasil à OCDE

A acessão do Brasil à OCDE foi mencionada por Bolsonaro: “Melhoramos o ambiente de negócios com a Lei da Liberdade Econômica (LLE) e a Lei das Startups. Como resultado, demos oportunidades para o jovem empreender e ter empregos de qualidade. Coroando todo esse esforço de modernização da economia brasileira, estamos avançando a passos largos para o ingresso do Brasil como membro pleno da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE”.

Sobre isso, avaliamos que:

  1. a LLE não gerou efeitos concretos positivos para a sustentabilidade e política climática. O que fez foi promover discussões sobre suspensão de licenciamento ambiental sem revisão técnica dos critérios.
  2. a Lei de Startups ainda não foi amplamente adotada, muito menos para soluções tecnológicas para sustentabilidade, florestas e clima (por nenhuma entidade pública).
  3. Tivemos perda do equivalente a 10 anos de poupança durante a pandemia e perdas reais de postos de emprego (ainda não recuperados). Ou seja, não há geração de empregos de qualidade, muito menos se considerarmos empregos verdes.
  4. O processo de acessão à OCDE se iniciou informalmente no segundo governo Lula e, formalmente, no governo Temer. O envio da carta para adesão no último ano de governo Bolsonaro não é um reflexo deste governo, mas sim de uma consistente ação da burocracia e da diplomacia.

 

Futuros discursos

Bolsonaro usou o que pode ser seu último discurso em uma Assembleia Geral da ONU mais como palanque eleitoral do que um espaço para apresentar compromissos do Brasil. A POLÍTICA POR INTEIRO seguirá avaliando os discursos de presidentes brasileiros, independentemente de quem suba à tribuna da ONU. Que as águas tenham se dividido e a próxima manifestação presidencial abrindo a reunião anual das Nações Unidas seja uma fala sobre ações que possam colocar o país no futuro – do presente.

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