Garimpo à luz do dia, Diário do Amazonas no escuro e Mato Grosso pede pra sair. Legalização do garimpo, atraso no Diário Oficial do Amazonas e tentativa de retirada do Mato Grosso da Amazônia Legal são destaques do balanço de fevereiro.
Desrespeito às normas de transparência pública. Manobra legislativa para minimizar impacto do desmatamento e liberação do garimpo de cima para baixo. Esses foram alguns dos atos da Presidência da República, governadores dos estados da Amazônia Legal e de deputados estaduais e federais em fevereiro de 2022. O monitor Foco Amazônia captou os movimentos políticos e traz um resumo dos pontos mais sensíveis identificados no último mês.
Incentivo à devastação: decreto de Bolsonaro estimula garimpo ilegal
No primeiro balanço apontamos o crescimento do garimpo ilegal nos rios da Amazônia e alertamos para o impacto socioambiental da criminalidade que opera na região onde se concentra mais de 90% da atividade garimpeira no Brasil. Em fevereiro, sem que nenhum cuidado para minimizar esses impactos tenha sido adotado, o Presidente da República, Jair Bolsonaro, lançou, por meio de decreto, um programa de incentivo ao garimpo na Amazônia. Sem detalhar critérios, o governo federal diz que aquilo que chama de “mineração artesanal e em pequena escala” será fonte de renda para a comunidade local e instrumento de desenvolvimento sustentável. Uma falácia, já que a atividade não é realizada de forma rudimentar, mas sim com maquinários de grande porte: o garimpo não é nem sustentável nem inclusivo.
O lucro da atividade ilegal não é distribuído para benefício da população local. Pelo contrário, além do impacto ambiental inerente à atividade, o garimpo espalha doença entre os mais vulneráveis. Atualmente, mesmo sob a ilegalidade, os garimpeiros avançam em conjunto pelos rios da Amazônia, em ações orquestradas que reúnem centenas de embarcações extrativistas. Por onde passam, deixam o rastro de mercúrio que afeta a fauna marinha e, por consequência, a saúde nutricional da população. “É uma normalização da ilegalidade, uma normalização do garimpo e uma pressão para essa legalização. Em termos de desmatamento ele não traz números significativos, mas o principal problema ambiental do garimpo é o mercúrio, que também é um problema social”, sentenciou Erika Berenguer, pesquisadora de Oxford e Lancaster, durante debate online promovido pela Política por Inteiro em dezembro de 2021.
Regresso insustentável
Com o aval do governo, o prejuízo deve se multiplicar. O mercúrio, que é o resíduo da atividade despejado nos rios, se acumula na gordura animal; assim, os predadores, como botos e jacarés, acumulam tanto mercúrio que começam a manifestar vários problemas fisiológicos. De acordo com Berenguer, o mesmo acontece com seres humanos. “A população rural da Amazônia se alimenta principalmente de peixe. Pra ter uma ideia, enquanto a média de consumo mundial de peixe é de 20 kg per capita por ano, na Amazônia a ingestão varia de 70 a 200 kg por pessoa”, explica. “Se esse peixe está contaminado por mercúrio e esse metal acumula no corpo, não é evacuado, a gente vai ficar contaminado. É o que temos na população indígena”. Uma das complicações de saúde possíveis é a Síndrome de Minamata, uma doença neurológica causada por envenenamento por mercúrio. Os sintomas incluem distúrbios sensoriais e mottores, danos à visão e audição, fraqueza, aborto e, em casos extremos, paralisia e morte. “Os efeitos do mercúrio não são só ambientais, são sociais e acabam afetando a população mais vulnerável da Amazônia; o garimpo está nas regiões mais remotas, onde qualquer problema de saúde acaba sendo amplificado”, alerta Erika.
Pegamos
Ô abre alas, que a boiada quer passar…
Dizem que o ano só começa depois do Carnaval, mas na Amazônia Legal, não. Nos dias úteis pós-feriado carnavalesco, não deu outra: Amazonas seguiu no bloco dos estados que não publicam diário diariamente. Ok, isso já deveria ser assunto pro balanço de março, mas é que no Amazonas isso não é privilégio de semana com dias de folga.
Querido semanário do Amazonas
No estado do Amazonas, o governo estadual atrasa a publicação de Diários Oficiais em até quatro dias. O Foco Amazônia apurou que o executivo vem desrespeitando as regras da transparência pública e publica os decretos praticamente em semanários e não diários. Os especialistas em políticas ambientais da nossa equipe identificaram que pelo menos desde dezembro de 2021 o governador não assina os decretos diariamente, fazendo com que os diários do estado sejam publicados com atraso de quatro dias, em média. Ao que tudo indica, o governo adotou a prática de concentrar as publicações em dois dias da semana: segunda e quinta-feira.
Além do atraso, as informações disponíveis no Diário Oficial do Estado não atendem a um formato próprio de dados abertos. Isso significa, segundo a Open Knowledge Foundation, que as informações deveriam estar disponíveis de forma conveniente, acessível e preferencialmente por download pela internet.
Por telefone, a Imprensa Oficial informou que o atraso se dá em razão da falta de assinatura do chefe do executivo, o governador Wilson Lima. A falta de publicação do documento que reúne os atos do governador afeta outras pastas além do meio ambiente, ilustra a falta de transparência em todas as áreas de abrangência do governo do estado e impossibilita que cidadãos acompanhem as decisões públicas.
Vacas gordas no Acre
É tempo de vacas gordas para os ruralistas do Acre. Um decreto de 10 de fevereiro reduziu em 80% a base de cálculo do ICMS nas operações interestaduais com gado bovino. O benefício fiscal é válido para saídas destinadas aos Estados do Amazonas, Rondônia e Roraima. No fim das contas, a carga tributária resultante será o equivalente a 2,4% sobre o valor da operação. Nas palavras do governador Gladson Cameli (PP), a margem de lucro mais gorda para os pecuaristas é o cumprimento de uma promessa de campanha. Não dá pra deixar de dizer que as atividades de mudança do uso do solo, como a pecuária, são as principais responsáveis pelas emissões de gases do efeito estufa, além de incidir de maneira direta e agressiva nos números de desmatamento.
O impacto ambiental do abate de bovinos é múltiplo: desmatamento, emissão de gases, consumo de água e sofrimento animal. Ainda assim, a decisão do executivo em aliviar a tributação é digna de aplausos, na visão do legislativo estadual. É que o deputado de origem paranaense Pedro Longo, do Partido Verde – pasmem, seria cômico se não fosse trágico -, usou seu tempo na tribuna da Assembleia Legislativa do Estado do Acre pra parabenizar o governador. Longo é o líder do governo na Aleac.
A questão é que esse “tempo de vacas gordas” para os ruralistas do Acre não é de hoje. A redução na alíquota do ICMS está amparada em um convênio de natureza federal autorizado em 2013 e que vem sendo prorrogado desde então. De acordo com a última publicação, a flexibilização das taxas é válida até 2024.
Cadê a Amazônia que tava aqui? PL federal quer excluir MT da Amazônia Legal
O Deputado Federal Juarez Costa (MDB-MT) quer resolver de uma vez por todas o desmatamento do bioma amazônico em terras mato-grossenses. Como? Ele sugere, em projeto de lei apresentado à Câmara Federal, que o estado seja excluído da Amazônia Legal, o que traria mais flexibilidade para expansão agrícola na unidade federativa. Assim, o agronegócio da região passaria a seguir as mesmas regras estabelecidas para o Cerrado. O PL 337/2022 lamenta que “a Amazônia Legal tem os maiores percentuais obrigatórios de reserva legal do país” e sob o argumento de que o Mato Grosso abriga outros biomas, sugere que o estado seja desmembrado do bloco para seguir padrões menos rigorosos de conservação. Em outras palavras, a matéria legislativa reivindica licença para desmatar.
A justificativa do parlamentar inclui o trecho: “O custo econômico para recuperação das reservas legais, ou para compensação dessa imensa área seria muito grande, e injustificável para uma das regiões agrícolas mais importantes do país. Retirar o estado da Amazônia Legal reduziria essa exigência ao piso de 20%, poupando os produtores mato-grossenses das despesas necessárias à manutenção de até 80% de terras sem uso agropecuário.” Em outro trecho, apela para aquilo que chama de “aumento da população e demanda mundial por alimentos”, como se a expansão agrícola atendesse de forma exclusiva à necessidade de nutrição humana, quando na verdade serve a outras indústrias. “Com o crescimento da população mundial e consequente aumento da demanda nacional e internacional por alimentos, se faz necessário uma expansão das áreas de produção em áreas de fronteira agrícola”.
Por falar em MT…
Chegamos ao segundo balanço mensal e ainda não obtivemos acesso aos dados da ALMT. Seguimos esperando, mas não sentados. Na busca insistente pelo acesso às matérias legislativas, um joga pra lá e pra cá entre a direção da casa legislativa e deputados, sem nenhuma solução concreta aparente. Tentamos de novo, via Lei de Acesso à Informação. A tramitação do pedido pode ser consultada no portal Achados e Perdidos da Transparência Brasil.
Enfim, a hipocrisia
A dívida histórica que os colonizadores têm com os povos indígenas das Américas também virou tema de projeto de lei na Assembleia Legislativa do Amazonas. Para “resolver” a pendência centenária, o deputado João Wellington de Medeiros Cursino (PSD), também conhecido como Tony Medeiros, protocolou dois projetos de lei em prol de um “pedido formal de desculpas ao povo Mura pela guerra do extermínio declarada pelo governo colonial e pelos excessos cometidos contra tão valorosa nação indígena” e “pedido formal de desculpas aos Povos Indígenas do Estado do Amazonas, pelos excessos cometidos durante o processo de colonização”. No que as leis, se aprovadas e sancionadas, implicam? Em nada. Nenhuma reparação concreta em meio a um contexto de constantes ataques às terras indígenas, avanços do garimpo e descaso com povos isolados.
A justificativa de um dos projetos é praticamente um plágio de texto publicado no site de uma organização socioambiental e não cita devidamente a fonte. Já o segundo projeto é um copia e cola de um site de história acrescido de outras informações do IBGE e argumentações genéricas em defesa da cultura dos povos indígenas.
Boas notícias? Algumas.
O Monitor do Foco Amazônia também capturou iniciativas públicas que, se executadas, estarão alinhadas à conservação da natureza. São elas:
- Um decreto do governador do Acre, Gladson de Lima Cameli, promete engrossar a fiscalização para “coibir o desmatamento, queimadas, incêndios florestais ilegais e ilícitos ambientais”, especialmente nas Unidades de Conservação. O texto cita a invasão de terras públicas e o aumento do desmatamento na região como embasamento para maior presença do Estado na defesa das Áreas Naturais Protegidas. O documento institui o Grupo Operacional de Comando e Controle que será coordenado pela Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão – SEPLAG e vice coordenado pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente e das Políticas Indígenas – SEMAPI.
- No Amazonas, o governador encaminhou à Assembleia Legislativa a proposta para criar o Fundo Estadual de Proteção e Defesa Civil – FEPDEC e abrir crédito adicional na ordem de R$ 10 milhões. Segundo o documento, o objetivo é atender às necessidades básicas de municípios afetados pelas enchentes, entre outros desastres. Como parte da justificativa, a mensagem do executivo menciona a “constante e ascendente ocorrência de desastres naturais” no estado, em uma menção explícita às mudanças climáticas. O recurso permanente deverá ser empregado na identificação de áreas de risco, além de equipamentos, logística e recursos humanos. Para entrar em vigor, o documento ainda depende de aprovação do plenário, já que atualmente tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJR) da ALEAM.
- O governador de Rondônia, Marcos José Rocha dos Santos, publicou a portaria do plano de manejo de uso múltiplo da Estação Ecológica Serra dos Três Irmãos, localizada em Porto Velho e considerada uma das mais importantes unidades de conservação de biodiversidade de todo o Norte brasileiro. A ESEC Serra dos Três Irmãos é uma UC de proteção integral criada em 1990, possui cerca de 87 hectares de extensão localizados na bacia hidrográfica do Rio Madeira. Até 2020 a unidade ainda não dispunha de plano de manejo. Rondônia possui 40 Unidades de Conservação Estaduais, que representam em termos de área corresponde a aproximadamente 18% da área superficial do estado.
- Também em Rondônia, uma portaria da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Ambiental (SEDAM) instituiu o Grupo de Trabalho “Governança Climática e Bioeconomia do Estado de Rondônia” para “organizar ações para a construção, formulação e execução da Política Estadual de Governança Climática e Serviços Ambientais do Estado de Rondônia”. O documento cita uma série de dispositivos nacionais e internacionais que tratam da mudança do clima e prevê um esforço em torno da articulação, estudos e projetos para “aumentar as ferramentas de enfrentamento às mudanças climáticas no Estado de Rondônia”.
Consórcio de Estados da Amazônia: sob nova – mas nem tanto – direção
O governador do Amapá, Waldez Goés (PDT), está de volta à presidência do Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia Legal. Ele foi o primeiro a ocupar a cadeira, em 2019, até ser substituído pelo governador do Maranhão, Flávio Dino. Goés reassume em março. Na gestão anterior, o governador do Amapá se posicionou contra o decreto de Bolsonaro que excluiu os governadores do bloco do Conselho da Amazônia, em fevereiro de 2020, além de transferir o órgão do Ministério do Meio Ambiente para a Vice-Presidência.
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