“Agora você pode destruir tudo que for de caverna, desde que o licenciamento diga que pode”, diz um espeleologista (especialista em cavernas) ouvido pela POLÍTICA POR INTEIRO sobre o Decreto Federal 10.935/2022, publicado nesta quinta-feira (13) no Diário Oficial da União. A norma dispõe sobre a proteção das cavidades naturais subterrâneas existentes no território nacional, revogando a normativa anterior (Decreto Federal 99.556/1990) e alterando de forma significativa importantes pontos relacionados à proteção dessas formações. Até agora, cavernas consideradas de relevância máxima não poderiam sofrer impactos negativos irreversíveis. A nova lei permite os impactos negativos irreversíveis desde que autorizados pelo órgão licenciador e quando o empreendedor cumprir requisitos estabelecidos (apresentação de informações). Além disso, flexibiliza a classificação das cavernas, retirando atributos relevantes para que uma cavidade fosse considerada de relevância máxima. Anteriormente, a norma falava em área que fosse habitat essencial para preservação de populações geneticamente viáveis de espécies de troglóbios (animais subterrâneos) endêmicos ou relícto. A nova norma não contém mais a expressão “geneticamente viáveis”, reduzindo a proteção de locais essenciais para a reprodução das espécies. A retirada também do termo “troglóbio¹ endêmico e relícto” diminui a proteção para esse grupo de espécies que vivem somente em uma caverna específica. A POLÍTICA POR INTEIRO apurou que o decreto desta quinta-feira é resultado de pressão dos ministérios de Minas e Energia e da Infraestrutura para facilitação de licenciamento de empreendimentos, incluindo grande empreendimentos de mineração com impacto em cavernas, duplicações de estradas e outras obras que deverão “aparecer” em ano eleitoral. As cavidades subterrâneas são bens da União (art. 20, inciso X, Constituição Federal), constituindo patrimônio cultural brasileiro (art. 216, inciso V, Constituição Federal). Ainda, cumpre recordar que o Decreto-Lei 25/1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, estabelece que constitui “o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico” (art. 1º, caput). A norma estabelece que estão “também sujeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pelo natureza ou agenciados pelo indústria humana.” (art. 1º, §2º). Segundo também o especialista ouvido pela POLÍTICA POR INTEIRO que participou em 2008 da elaboração do Decreto 6640/08, é importante resgatar que o Decreto no 99.556/1990 considerava todas as cavidades naturais como intocadas e, por isso, não passíveis de supressão. O Decreto nº 6.640/2008 já trazia uma grande flexibilização ao restringir esse status de proteção a um grupo seleto de cavernas que apresentassem atributos significativos para justificar sua preservação. O que está sendo proposto agora simplesmente retira a proteção desse grupo seleto de cavernas, permitindo sua destruição, sem qualquer salvaguarda inclusive das cavernas testemunho, uma vez que o novo decreto as considera também como de relevância máxima e, portanto, passíveis de supressão em um licenciamento futuro, mesmo tendo sido indicadas como compensação para supressão de uma outra cavidade de relevância máxima ou alta. Fora a flexibilização para supressão de cavidades de máxima e alta relevância, trazida pelo novo decreto, ele estabelece a lógica de tratar as cavidades como unidades individuais ao desobrigar a conservação de suas áreas de influência. Devido à complexidade das comunicações entre sistemas de cavernas, os maciços onde elas ocorrem devem ser considerados importantes elementos da paisagem e com importante papel na conectividade entre bacias hidrográficas, funcionando como reservatórios subterrâneos de água, que podem tanto atuar como bacias de contenção na prevenção em enchentes como na distribuição de água entre diferentes regiões. Não é raro constatar impactos nas ressurgências de cursos hídricos a quilômetros de empreendimentos que estão em andamento e seus sumidouros, resultando em assoreamento de nascentes, como ocorreu nas minerações no município de Pains (MG) e nascentes do São Francisco. A preservação de cavernas também é uma medida de conservação de água subterrânea, aquíferos, nascentes, a biodiversidade, a geologia, a cultura e a história. A questão é tão séria e causará tantos impactos que a Sociedade Brasileira de Espeleologia-SBE e a Sociedade Brasileira para o Estudo de Quirópteros – SBEQ, já vieram a público para se manifestar sobre a gravidade do Decreto Presidencial 10.935 publicado em 12 de janeiro de 2022, em edição extra do DOU e já está sendo organizado um abaixo assinado pedindo uma Ação de Inconstitucionalidade Decreto 10.935 de 12/01/2022. O que mudou na proteção às cavernas brasileirasElaboramos a tabela abaixo com a comparação entre a nova norma e a revogada, com comentários específicos relativos às mudanças. No mais, trazemos como destaques: Atributos para reconhecimento de cavidade natural subterrânea com grau de relevância máximo: retirados os atributos (i) morfologia única; (ii) isolamento geográfico; (iii) hábitat essencial para preservação de populações geneticamente viáveis de espécies de troglóbios endêmicos ou relícto; (iv) interações ecológicas únicas; (v) cavidade testemunho. Diminuição de proteção:Anteriormente havia vedação de impactos negativos irreversíveis em cavidade natural subterrânea com grau máximo e sua área de influência. Pela nova redação, os impactos negativos irreversíveis são permitidos nessas cavidades, desde que autorizados pelo órgão licenciados e quando o empreendedor cumprir os requisitos (apresentação de informações). Competência: para alteração da classificação do grau de relevância de cavidade natural subterrânea, a competência era anteriormente do ICMBio, sendo agora do órgão ambiental licenciador. Ainda, o órgão licenciador poderá considerar proposição do ICMBio ou do empreendedor. ¹ Os troglóbios são animais cuja distribuição restringe-se exclusivamente ao meio subterrâneo e podem apresentar diversos tipos de especializações morfológicas, fisiológicas, e comportamentais que provavelmente evoluíram em resposta às pressões seletivas presentes em cavernas. Fonte ImcBio: